domingo, 8 de fevereiro de 2009

Um Plano de Manejo* para o Sítio Burle Marx

8/12/99
A elaboração de um plano de manejo é uma sugestão que recebi recentemente e que chega a ser considerada, por alguns, medida imprescindível para o tratamento do acervo natural do SRBM. Gostaria de externar minha opinião sobre o tema.

Não se pode evitar a conjetura de que, se Roberto Burle Marx quisesse plano de manejo explícito para seu Sítio, teria deixado um. Mas, por que não deixou? Logo ele que teria todos os motivos para fazê-lo. Talvez porque:
 É impossível enquadrar a vida num papel milimetrado. Muitos já tentaram e só conseguiram atrapalhar-se e aos outros. Uma fábula, à guisa de ilustração, me ocorre: li, não me lembro mais onde, que um poeta, para louvar a Deus, decidiu pôr em versos toda a Criação. Recluso, passou dezenas de anos escrevendo, metrificando, polindo as rimas e, a duras penas satisfazendo suas exigências de perfeição, deu por encerrada a ciclópica tarefa. Depois de despachar para seu editor o volumoso caderno, preparava-se para um descanso merecido quando viu surgir no horizonte um enorme disco amarelo. Levou as mãos à cabeça: tinha esquecido a Lua!
Tentar, com um mínimo de responsabilidade, fazer um plano de manejo para o SRBM é tentar uma tarefa insana. Em todas as etapas existem n casos de exceção. Os limites para qualquer zoneamento serão necessariamente sempre muito imprecisos, as variáveis, inúmeras e os fatores condicionantes, mutáveis. Nas áreas em que se poderia determinar um grau maior de fidelidade ao que existe hoje, encontram-se plantas clandestinas e outras de origem ainda incerta. Em áreas mais propícias à sucessão espontânea, poderá haver, mais cedo ou mais tarde, necessidade de intervenção, ditada, por exemplo, pela multiplicação espontânea de espécies exóticas da coleção. Levando-se também em consideração a velocidade vertiginosa de crescimento das plantas (e das pragas) nas nossas latitudes, a escassez de recursos, a exigüidade da mão-de-obra e a falta de agilidade administrativa, característica das instituições públicas, chegaremos à conclusão de que o método do casuísmo estratégico criterioso -- método burle-marxiano por excelência -- é preferível para o tratamento do acervo natural do SRBM.
 Planos de manejo podem engessar, até sem querer. São um exercício de poder, e há perigo nisso. Muitas vezes decorrem do seguinte raciocínio subconsciente: “— Os outros só fazem bobagem. Só eu faço as coisas certas e, por isso, vou determinar ad aeternum o que meus sucessores deverão cumprir, para que não se desviem do caminho certo quando eu não estiver mais aqui, vigilante, impedindo-os de seguirem sua tendência (seu “viés”) natural.” Sujeitar futuros diretores numa camisa de força à prova de erros pode ser tentador, mas, mesmo que isso fosse possível, correríamos o risco de impedi-los de fazer no futuro coisas excelentes que não somos capazes de imaginar hoje. As condições mudam e a tecnologia avança. Por que achar que são eles, e não nós, que vão fazer as coisas erradas? Por que não confiar e imaginar que os diretores do futuro vão encontrar as soluções adequadas para os futuros problemas do SRBM?
 Planos de manejo são em geral uma burocracia inútil, um palavrório vazio, um desperdício de energia, a perda de um tempo precioso e, na grande maioria das vezes, só servem para serem ignorados, como certas leis que não pegam, ou esquecidos, como certas teses jamais relidas. A citação abaixo, que me chegou às mãos, dá uma boa idéia da linguagem típica de um plano de manejo:
“A base para a consecução do Manejo, deverá ser a adoção da metodologia adequada, que reuna o somatório harmônico de cada fase dos trabalhos, levando-se em consideração que os componentes físicos e biológicos determinantes do sistema local devem se complementar, de modo a eliminar as diferenças em busca do equilíbrio.”
Que tal?
 Planos de manejo são supérfluos quando a área a ser protegida tem um conselho criado para cuidar desta proteção. Além disso, em casos de lapsos -- coisa muito provável -- podem criar brechas que enfraqueçam o Conselho.

Com estas razões fundamento a inevitável conjetura acima referida. No meu entender, Roberto preferiu instituir um conselho porque este pode fazer frente a situações imprevistas e, ademais, um conselho é renovável. Diretores e Conselheiros passam, mas o Conselho permanece, capaz de acompanhar a evolução, seja ela científica, técnica, econômica, cultural, política etc. As idéias de nosso saudoso mestre, constantes de suas conferências, e sua vontade expressa são o Plano de Manejo mais legítimo, funcional, prático e duradouro que podemos ter. O Conselho sempre estará aí para o defender. Os que duvidarem disso mais motivos terão para duvidar do poder e da eficácia de um complexo conjunto de diretrizes, elaborado por Conselheiros que provavelmente já estarão ausentes, nesse hipotético tempo futuro adverso em que (para ser coerente com este tipo de dúvida) o Conselho se encontraria incapacitado de cumprir sua missão.

Talvez Roberto só tenha conseguido criar o Sítio e, por extensão, sua obra paisagística por causa da grande confiança que depositava nos amigos e, por extensão, no Ser Humano. Por exemplo: quando José Tabacow e eu propusemos doar seu sítio à Fundação Pró Memória, ele disse apenas: “— Façam como acharem melhor”. E estou certo de que cada um, qualquer um, dos que trabalharam com ele pode lembrar de uma história de confiança semelhante. Essa capacidade de pular no escuro, esse desprendimento, essa coragem, essa fé era Roberto Burle Marx. Contaminar seu legado, mesmo com a melhor das intenções de protegê-lo, com desconfianças e receios em relação ao futuro, é desvirtuá-lo, é não compreender o espírito da obra, é atentar contra o patrimônio. Mais do que supérfluo, um plano de manejo, feito hoje para o SRBM, seria, na minha modesta opinião, inconveniente.**

* A palavra manejo, tão em moda entre os que lidam com o meio ambiente, veio do inglês “management” e nisto tem um certo parentesco com outra, esdruxulamente traduzida: drogadito (de “drug addict”). Esse arremedo sonoro tem o ranço de um academicismo pernóstico. Outra palavra nas mesmas condições é a, cada vez mais popular, viés, que foi o que os nossos doutores puderam arranjar para “bias”. Não vêem problema em deformar a língua portuguesa. O sentido do termo é secundário. O que importa para eles é ostentar intimidade com o idioma que é utilizado nos “papers”.

** Se, apesar de meus esforços argumentativos, a exigência de um plano de manejo formal prevalecer, não quero passar por teimoso. Parafraseando uma célebre proposta para a Constituição Brasileira, não tão prolixa quanto a atual (calhamaço salvador que veio para consertar tudo quanto houvesse de errado no País), já sugiro uma alternativa:
PLANO DE MANEJO PARA O SÍTIO ROBERTO BURLE MARX
Artigo primeiro -- Todos os Diretores e Conselheiros ficam obrigados a ter bom senso.
Artigo segundo e último -- Revogam-se as disposições em contrário.

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