quinta-feira, 14 de maio de 2009

Depois da fala do Dalmo

Com base nas declarações ouvidas nas reuniões realizadas pelo IPHAN em Salvador e, agora (5-5-09), em Brasília, acho que devo (o fruto parece de vez) falar de uma questão estruturante que não tive oportunidade de expor depois da brilhante fala do Diretor do Departamento de Patrimônio Material (DEPAM), no Centro de Convenções Israel Pinheiro. E nada mais estruturante do que conceitos.
Nestes encontros tem sido bastante mencionado um tal "alargamento do conceito de patrimônio", o que sem dúvida vem ocorrendo, porém, talvez pelo fato de que o Sítio Roberto Burle Marx (SRBM) seja apenas um ponto se comparado às superfícies estaduais do patrimônio gerido pelas Superintendências Regionais do IPHAN, só nos reste o aprofundamento do mesmo conceito.
E faço isso em legítima defesa do SRBM, pois ele e os jardins tombados em geral não encontram lugar na atual dicotomia material/imaterial por mais que o conceito se espraie sem entretanto descer radicalmente aos fundamentos.
O patrimônio que hoje denominamos como imaterial, embora tenha conquistado, por pressão irresistível da realidade, algum espaço no cenário cultural, enfrentando o materialismo exacerbado de nossa era, continua restrito a um gueto que é delimitado/representado pelos objetos cujo suporte material é suficientemente efêmero para passar por inexistente. Porém não há caso em que os dois tipos da classificação vigente (mat./imat.) encontrem-se indissociados. Minha tese é que todo o patrimônio cultural é essencial e prevalentemente imaterial, impalpável, intangível. Para quem tiver interesse, ela pode ser acessada no endereço
http://sitioburlemarx.blogspot.com - link para - Tese de Doutorado - capítulo que trata de patrimônio.
Um ajuste de conceitos é necessário na solução dos problemas paisagísticos e (percebi claramente isto na última reunião) o arqueológico.
Não há patrimônio cultural cuja imaterialidade seja desvinculada de substância e em que tal substância não lhe sirva meramente de suporte. O que hoje classificamos como objeto-de-patrimônio-cultural-material é apenas um bem cultural cujo suporte material é perene ou próximo disso. Nos casos em que esta perenidade falha, ou apresenta defeitos, surge o patrimônio arqueológico.
Disse, e muito bem, o Diretor do DEPAM, Dalmo Vieira Filho, em Salvador: "– Precisamos tombar o que explica o Brasil”. Isto corrobora (se não corrobora, ao menos não desmente) a tese de que o patrimônio a ser conservado é imaterial. E se é a própria explicação do Brasil que precisamos proteger, descobrir, conscientizar, etc. porquê deveria ser diferente com o patrimônio arqueológico? Quão menos coragem seria exigida do Dalmo para colocar os devidos pingos nos is se a questão já estivesse conceituada devidamente? Quão menos esforço intelectual ele teria que empregar se já se considerasse todo patrimônio cultural, inclusive o arqueológico, como essencialmente o significado que interessa à cultura nacional, ou seja, patrimônio imaterial? Não é qualquer caquinho de telha do século XVIII que sustenta informação ou dá testemunho de algo que valha a pena lembrar. O mesmo se dá com relação aos elementos peculiares do paisagismo: não é qualquer planta que encerra representatividade superior ao ônus de mantê-la. Há espaços vazios bem mais significativos do que certas árvores. É o patrimônio intangível que vai fazer a distinção nesses casos e em quaisquer outros relativos a bens culturais. A palavra Arqueologia não é mágica e esta disciplina não tem o poder de sacralizar todo material que encontre se nele não houver imaterialidade (conhecimento, significado) dignificante. Isso se tornou o óbvio, depois da fala do Dalmo, e todos já sabem. A meu ver falta apenas deixar que este saber estruture nossas ferramentas, reestruture o IPHAN.


Não é interessante que exista no Instituto um Departamento de Patrimônio Imaterial por dois motivos: primeiro - todo patrimônio cultural é imaterial; segundo - se existe um departamento com esse nome, que trata de determinados itens, isso implica no erro de supor que os demais objetos do patrimônio cultural sejam 100% matéria, isto é, não possuam imaterialidade agregada. Por outro lado, tampouco é útil haver um Departamento de Patrimônio Material porque todos os objetos culturais, mesmo aqueles cuidados pelo DPI, possuem matéria física, ainda que efêmera e despercebida. O equívoco da classificação é agravado pelo fato de que os objetos culturais cuja materialidade se situe entre o efêmero e o perene – os temporários (toda árvore morre) – ficam no limbo, como o SRBM e os jardins tombados.
Nesta fase de reestruturação, a que fomos chamados a opinar, sinto-me no dever de propor a seguinte divisão para os departamentos do IPHAN, baseada na duração do suporte material dos objetos – forma em que tanto as questões paisagísticas como as arqueológicas encontram, além de um lugar conceitual, soluções mais fáceis e naturais, sem prejuízo das que já estão contempladas na atual estrutura:

1. Departamento do Patrimônio Efêmero - incluindo todos os bens hoje cuidados pelo Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN (DPI) e os que futuramente seriam. A ênfase dada aqui ao tratamento do suporte material respectivo é basicamente a reedição.
2. Departamento do Patrimônio Temporário - que incluiria os jardins tombados e o SRBM. O tratamento dado aqui ao suporte material é basicamente a substituição.
3. Departamento do Patrimônio Perene - para os objetos cuidados atualmente pelo DEPAM, com uma subdivisão para os objetos do patrimônio de suporte perene vestigial (arqueológico, paleontológico, pré-histórico, histórico). O tratamento dado aqui ao suporte material é basicamente a conservação.

Na última reunião, depois da fala do Dalmo, muitos assinalaram o fato de que ele “pôs o dedo na ferida”. Sim, ele fez isso, mas essas feridas “não vieram de Marte” (como lembrou o Presidente Luiz Fernando de Almeida, na mesma reunião, parafraseando Caetano Veloso). Essas feridas são sintomas. E sintomas de que algo não vai bem no organismo conceitual profundo. A ferida arqueológica foi exposta em Brasília. Falta ainda tomar consciência, para poder tratar, da ferida paisagística.

Reconheço que há tarefas urgentes em marcha, que as estruturas criticadas são extremamente sólidas e que talvez as mudanças propostas sejam vistas como intempestivas, mas se este não é o momento de apresentá-las, qual seria?