Para fazer a "Flora Brasiliensis" – o maior trabalho escrito, em qualquer assunto, de alguém sobre um país que não o próprio – o botânico alemão, cognominado "O Pai das Palmeiras", percorreu durante 3 anos, a partir de 1817, os estados do Rio, São Paulo, Minas, Bahia, Goiás, Piauí, Maranhão, Pará e Amazonas.
José, que havia lido o livro "Viagem pelo Brasil" de Martius e de seu companheiro zoólogo Von Spix, nos informava durante as excursões:
– Por aqui passou Von Martius!
Era o suficiente para nos transportarmos em pensamento àquele mesmo local menos cento e sessenta e tantos anos. A curiosidade e o espírito comparativo surgiam, inevitáveis: o que teria mudado neste período ao longo do trajeto?
Arquiteto, paisagista e sócio de Roberto na época, José Tabacow teve então a ideia de refazer a viagem de Von Martius e me convidou a participar.
Tratando de viabilizar o projeto, reduzimos logo de saída o percurso total para um que nos custasse apenas um mês, pois só dispúnhamos das férias. Seria uma viagem piloto. Como não tínhamos experiência de refazer viagens, deixaríamos o resto para depois. Para aumentar as chances de encontrar as mesmas espécies em flor, limitamo-nos aos caminhos percorridos pelos alemães no mesmo mês. Ficamos então com 3 Julhos para escolher e, entre o amazonense, o maranhense e o mineiro, o mais barato ganhou: Julho de Araçuaí a Januária.
Nosso entusiasmo era grande e começamos a trabalhar na pesquisa e na busca de patrocínio ao mesmo tempo.
Nesse ponto a história se bifurca e um dos ramos passa pelo Itamaraty, por sua esplêndida mapoteca e pelo contato com uma senhora cujo auxílio, além de possibilitar o projeto, contribuiu para também viabilizar o principal fruto do outro ramo: o Sítio Roberto Burle Marx que ainda não existia com esse nome.
A referida senhora chama-se Isa Adonias. Ela nos mostraria os mapas antigos de que precisávamos, e que só ela saberia onde encontrar, bastando o enunciado de questões tais como: — Onde fica Porto de Angicos? — Como foi possível aos viajantes divisarem a serra do Grão Mogol, "flutuando como nuvem azul", olhando para o poente desde um ponto que fica uns 40 km ao sul da cidade de mesmo nome? Etc., etc.
A resolução desses problemas foi, graças à riqueza cartográfica do Itamaraty e à ajuda de sua eficientíssima funcionária, uma deliciosa brincadeira de detetive que nos animou a continuar na procura por patrocínio.
Já tínhamos riscado fontes tidas como certas, como o ICBA e o Instituto Goethe, que não colaboraram apesar de nossos argumentos. (Lembramos que Dom Pedro II sustentou o trabalho de Von Martius e, depois que o Império foi derrubado, a República honrou o compromisso do Imperador até 1906, quando acabou a publicação da obra).
Decidimos então procurar um amigo meu, o designer João de Souza Leite, que trabalhava na Fundação, de inesquecível nome, Pró-Memória como Coordenador do Núcleo de Editoração.
– A ideia é boa mas precisa ser mais estaiada. Estaiando daqui, estaiando dali, ela vai ficar tão firme que acaba saindo sozinha.
Achei a metáfora perfeita, mas percebi que meu amigo estava nos dizendo um educado não. Na minha ignorância dos assuntos do patrimônio histórico e artístico perguntei então se a Pró-Memória gostava de plantas também ou só de casas. Em outras palavras: se se preocupava apenas com o patrimônio arquitetônico e artístico ou se o meio ambiente também era objeto de seus cuidados. João Leite me explicou que os ecossistemas e o meio ambiente eram contemplados nos estatutos do SPHAN e Pró-Memória como bens culturais.
– Veja, por exemplo, o seguinte: a Fundação acabou de comprar o Museu do Ruschi, ou melhor, o grande naturalista dos beija-flores, Augusto Ruschi, doou seu Museu para que depois de sua morte seja preservado pelo governo. De acordo com ele, fizemos os estatutos que orientarão o destino dessa entidade chamada Museu Mello Leitão. Desde já a Fundação Pró-Memória assume as despesas com funcionários, gás, luz, telefone, impostos, etc. A inobservância dos estatutos acarretará a reversão da doação para seus herdeiros naturais.
– Vocês não querem comprar também o Sítio do Burle Marx? – perguntei.
A fisionomia de João Leite se iluminou:
– Porquê? Está à venda?
José percebeu instantaneamente que a prioridade mudara e passou a explicar a história das dificuldades crescentes de Roberto na manutenção do Sítio, de sua preocupação com o destino que o formidável patrimônio natural, científico e artístico teria quando ele morresse e dos desentendimentos com seu irmão, sócio e co-proprietário do Sítio, Guilherme Siegfried Marx. Disse também que, naquelas condições, o Sítio não sobreviveria três meses a Roberto. Acrescentei que há muito tempo ele vinha falando em transformá-lo numa fundação sem conseguir realizar o plano.
– Fundação eu acho péssimo. Sendo particular eu acho péssimo – advertiu João Leite – viram o que aconteceu com a Fundação Castro Maia?
Calculei que boa coisa não devia ter sido e tratei de não desviar do nosso novo, inesperado e interessantíssimo assunto:
– Roberto nem sabe que estamos aqui e muito menos falando disso, portanto é bom que fique entre nós por enquanto.
Saímos do Palácio Gustavo Capanema e fomos direto para o escritório de Laranjeiras onde apresentei a ideia.
Depois de ouvir tudo com a máxima atenção, sem perguntar rigorosamente nada, Roberto disse apenas uma frase:
– Façam como acharem melhor.
Em meio à vertigem provocada pelas perspectivas que se abriam e pela facilidade com que as coisas começavam a se encaixar, liguei para o João Leite que falou com Irapoan Cavalcanti de Lyra, Diretor-Executivo, que falou com Marcos Vinicios Vilaça, Presidente do Pró-Memória, que moveu os devidos céus e terras.
Encadearam-se, de Agosto de 84 a Março de 85, muitas reuniões com o pessoal da Fundação, com advogados e com amigos de Roberto para o estudo e adaptação de estatutos de entidades congêneres. No final de cada uma dessas reuniões voltávamos sempre à demanda original:
– E a nossa viagem?
– Vão tocando, vão tocando, está tudo bem – era a resposta invariável.
Houve brigas, acordos, almoços, festas, solenidades, aconteceu a doação, (uma grande amiga de Roberto, a Senhora Maria do Carmo Nabuco, chegou até a dizer: – Roberto, você não tem a menor ideia do tamanho da sua generosidade.), o Sítio Santo Antônio da Bica foi tombado estadualmente, passando a se chamar Sítio Roberto Burle Marx, e a humilde viagem de nossa equipe de seis pessoas durante um mês em Minas, pernoitando nos "melhores" hotéis de cidades como Botumirim e Itacambira - que disputam o título de Capital Mundial da Doença de Chagas - acabaria saindo pelo Sítio, como seu primeiro projeto de pesquisa.
Num certo sentido, foi necessário inventar nosso próprio patrocinador.
Apesar de um relativo sucesso (o relatório sobre o que mudou e o que permaneceu ao longo do trecho da viagem de Martius foi transformado numa exposição no Paço Imperial patrocinada, justiça seja feita, pelo ICBA/Instituto Goethe), o efeito colateral da pesquisa foi incrivelmente maior do que o objetivo pretendido no início. Atiramos num ratinho e acertamos um elefante que, caindo, esmagou o ratinho.
A inesquecível Fundação chama-se, agora, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, órgão do Ministério da Cultura e o SRBM é uma de suas Unidades Especiais.
Desde Novembro de 1995 estou diretor do SRBM e, passados quase catorze anos da morte de nosso saudoso mestre, fico feliz ao relembrar outra frase dele: "O tempo se encarrega de completar uma idéia". Ela se adapta perfeitamente à situação do Sítio hoje, são e salvo, conservado como a obra-prima de alguém que soube tratar a Natureza de maneira inteligente, apaixonada e, em última análise, prudente, pois há indícios de que sua forma de proceder - um paradigma ético e estético -, é condição sine qua non para a sustentabilidade de nossa estabanada espécie neste planeta delicado.
Roberto tem pontos em comum com o Itamaraty. Um de seus mais belos projetos é para o palácio de Brasília. Tinha inúmeros amigos diplomatas e ele próprio era um embaixador da cultura de nosso país. E a preservação de seu inestimável legado, através da tênue trama que envolve a instituição do Sítio Roberto Burle Marx, também tem algo a ver com a Casa do Barão do Rio Branco.
Adorei conhecer um pouco desta historia. Excelente contribuição! Um salve a mira em ratinhos!
ResponderExcluirObrigado Lillyan!
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