quinta-feira, 19 de novembro de 2009

O Sítio Santo Antônio da Bica: um laboratório paisagístico.

06/11/2008
Publicado na revista Leituras Paisagísticas n.º3 em 9/11/2009

“– O Sítio é meu lugar de experiências em paisagismo”.
Com essas palavras Roberto Burle Marx definia o espaço onde empenhou 45 anos de trabalho quase ininterrupto. Quem desejar compreendê-los, homem e lugar, deve aceitar plenamente o que a frase significa.
E dizer isto do Sítio – que é um lugar de experiências – aparentemente encerra alguma modéstia. As pessoas, de maneira geral, aturdidas com a beleza dos jardins que as envolvia, não estavam propensas a acreditar que aquilo tudo, aquelas verdadeiras sinfonias vegetais fossem apenas ensaio, rascunho, teste. A afirmação, por mais enfática e explícita que pudesse ser, passava por recurso legítimo de uma retórica tão exuberante quanto o ambiente em que era formulada. Mas, não se tratava apenas de retórica, ali estavam a chave para a compreensão de que tipo de patrimônio foi legado por RBM e, conseqüentemente, a indicação de como conservá-lo.
Ao longo dos anos em que estou diretor deste mágico espaço, tenho me deparado com várias idéias insuficientes e até errôneas sobre o que é o SRBM. As tentativas de rotulá-lo resvalam de lugar-ecologicamente-equilibrado a obra-de-arte, sem atingir o alvo. Existem aqueles que, por achar que a manutenção do Sítio deve ser pautada por leis de proteção ambiental, só podem estar pensando, numa concepção por demais grosseira, que o Sítio seja uma reserva natural. Outros o confundem com algum tipo de jardim botânico, cujo valor capital residiria na variedade e na raridade das espécies que abriga. E, por ter sido a casa do maior paisagista brasileiro, há os que julgam tratar-se integralmente (365.000 metros quadrados) de um jardim definitivo, ou obra de paisagismo tão irretocável quanto possível, “já que seu autor não mais está presente”.
Ora, pautar a preservação do SRBM por leis ambientais, como corolário da primeira idéia, seria decretar seu fim em pouco tempo, pois numa reserva natural é proibido retirar árvores nativas, mesmo que ainda em formação, e são exatamente estas que tentam se imiscuir em todas as áreas do Sítio, o tempo todo, para transformá-lo num matagal caótico, oposto à máxima burle-marxiana “O jardim é a natureza ordenada pelo homem e para o homem”. Em segundo lugar, valorizar individualmente, ainda que sob critérios botânico-científicos, as plantas do Sítio em detrimento de seus conjuntos é impensável, basta percorrê-lo para se ter a certeza disso. Com relação à terceira concepção, lembremo-nos de que há no Sítio regiões que RBM nunca trabalhou, nem pisou e, mesmo nas áreas mais elaboradas paisagisticamente, ele não considerava as composições vegetais como obra de arte finalizada, diferentemente dos demais jardins que projetou.
Nem mesmo a mais prudente e balanceada mistura dos três tipos de percepção refutadas acima é capaz de prover mais indícios conceituais para o tratamento e a preservação adequados do SRBM do que a frase com que se inicia este artigo.
Além de residência, chácara comercial de produção de plantas ornamentais e lugar de uma extraordinária coleção botânica, o Sítio foi, principalmente, um laboratório ou ateliê ao ar livre, com todas as conseqüências que tal fato determina.
É mais do que sabido que, descontente com a mesmice nos hortos e viveiros comerciais, RBM foi buscar na natureza o material de que necessitava para fazer jardins. Fez isso a vida toda em verdes safáris empreendidos a cada vez que tinha notícia de locais de natureza intocada. Como seus troféus – plantas em sua maioria inéditas em paisagismo, algumas até para a ciência – não vinham acompanhados de manual de instruções, era necessário descobrir o modo de mantê-las vivas e como se comportariam fora de seu habitat ao longo de um tempo razoável. Por isso os sombrais do Sítio nunca foram um mero mostruário de museu, com função apenas expositiva, mas, desde o início, lugar onde, de forma empírica, era praticada a aclimatação, a manutenção e a multiplicação das espécies até um dia em que cada uma delas seria testada de outra forma (digo seria porque muitas delas não tiveram tempo de o ser ou são em número ainda insuficiente para tal).
Podemos dividir, então, as ditas experiências em dois grupos básicos: as de ter e as de usar.
As primeiras eram exatamente essas transplantações – trabalho que exigia algo que RBM e alguns de seus jardineiros já tinham incorporado: o conhecimento de uma horticultura meio prática, meio intuitiva, bastante eficiente. O número de espécies da coleção é, em grande parte, resultado do êxito nesse tipo de experiência. As bases dos resultados positivos porém, eram lançadas bem antes do plantio nos sombrais, precedendo mesmo a chegada ao lugar da coleta. Um caso para ilustrar é o das Veloziáceas: durante algum tempo, esse grande admirador da família (Veloziaceae) deixou de trazê-las nas excursões, pois secavam e morriam todas (ou ele assim julgava). Mas quando sua amiga e especialista no táxon, a Dra. Nanuza Luiza de Menezes, lhe ensinou o “segredo” (que consistia simplesmente em, depois de plantada, esperar um tempo absurdamente mais longo do que o normal para que a planta, convenientemente regada, “revivesse”), ele não hesitou em transformar um jardim que havia feito na parte posterior de sua casa na maior coleção mundial desse tipo de planta. Devido a tal conhecimento (ou socrático desconhecimento) RBM evitava coletar espécies cujo transplante fosse muito improvável, e assim mantinha a proporção das plantas sobreviventes acima de 90%.
O know-how na seleção de uma equipe especializada e entusiasmada de colaboradores era outro ingrediente indispensável ao sucesso das empreitadas: motorista de caminhão (capaz de alcançar os lugares mais carentes de pavimentação e nivelamento), arrumador (jardineiro com especial talento para acondicionar mais plantas por metro cúbico), observadores (gente que distinguia desde muito longe o que interessava) e buscadores (exímios “alpinistas”, tanto arbóreos quanto rupestres) formavam um verdadeiro dream team da coleta botânica.
E, por falar em botânica, o botânico oficial podia variar de excursão para excursão, mas era gente do nível de um Luiz Emygdio de Mello Filho, de uma Graziela Maciel Barroso, que muitas vezes o acompanhava. É bem verdade que alguns foram especialistas em determinada e exclusiva família, mas em outros casos, como por exemplo, no do Dr. Gert Hatchbach de Curitiba, cuja especialidade é não uma família botânica, mas... Paraná, as enormes dificuldades na redução de nossa ignorância (estagiários e colaboradores que também iam) ficavam bem atenuadas.
Já as experiências do segundo tipo – as propriamente ditas, as de usar vegetação, aquelas a que provavelmente RBM se referia na frase – começavam quando ele já tinha um número que julgasse suficiente de espécimes e consistiam na utilização dos mesmos em ajardinamentos dentro do Sítio. Além de testar as plantas em outro local, às vezes bem diferentes daquele em que estavam se aclimatando, composições estéticas eram, enfim, ensaiadas. Tal procedimento tinha também a vantagem de desafogar os sombrais e a virtude que se traduz no ditado “Não colocar todos os ovos na mesma cesta”: se alguma fatalidade (doença, roubo, meteorito) se abatesse sobre um dos grupos, restaria outro.
Esta simplificada e ligeira descrição analítica das ações que eram rotineiramente empreendidas é bastante para que se chegue sem esforço à dedução de que as experiências favoreceram a colonização do SRBM e, mais do que isso, foram o modo mesmo de seu desenvolvimento. Por isso as composições do Sítio são diferentes dos jardins formalmente projetados por RBM. Nelas encontramos uma variedade muito maior de espécies. Nelas não está explícito um princípio econômico que RBM sempre procurou transmitir: “Dizer o máximo com o mínimo“. Muito pelo contrário, é como se a coleção de plantas estivesse invadindo os jardins.
Iniciava-se então, com copiosa diversidade e indeterminada duração, um, digamos assim, estágio probatório vegetal. Eram tantas as experiências simultâneas que percorrer o Sítio foi, para RBM, sempre muito profícuo, tanto profissional quanto existencialmente, com recompensas bem maiores do que decepções. Roberto Menescal, um grande colecionador de bromélias, relatou um caso memorável: numa feita, ao ver que um Gramatophyllum (gênero gigante de orquídeas) florescia pela primeira vez desde que o plantara, a euforia de RBM foi tanta que ele, para se aproximar da planta, atravessou em linha reta o lago que se interpunha, sem descalçar um sapato, sem esvaziar um documento dos bolsos, quando poderia ter dado a volta num percurso alguns centímetros mais longo.
Na verdade, a experimentação continua até hoje porque as plantas desconhecem que RBM não mais afere os resultados e prosseguem, já há 14 anos, num comportamento completamente alheio a essa ausência fundamental.
Por outro lado, por falar em resultados, só podemos ter certeza de que uma experiência chegou ao fim quando dá errado. Explico: por mais tempo que uma planta, ou conjunto de plantas, permaneça em estado satisfatório, sempre é possível que no momento seguinte haja um colapso-surpresa ou inicie-se algum processo de degradação inexorável. A espécie Bauhinia blakeana, por exemplo, entusiasticamente utilizada a princípio, em razão de sua profusa floração e crescimento rápido, poucas décadas depois revelou-se frágil, pois seus indivíduos perdem galhos e ficam deformados, mostrando um desempenho longe do ideal para arborização viária. Em outro caso exemplar, o plantio regional de Mangifera indica seria hoje evitado, pois a espécie é vítima de uma praga, por enquanto incurável, que ataca na zona oeste do Rio de Janeiro e está ampliando seus domínios.
Já há algum tempo que o conceito de paisagem deixou de incluir apenas o que é abarcado num golpe de vista ou inventariado em determinada atualidade, sofisticando-se a ponto de contemplar também a história, os processos, a memória, as funções etc.. É, pois, imprescindível que se atente para a gênese, para o processo deflagrador que confere o caráter sui generis do SRBM. Sendo um local raro, talvez único, com certeza pioneiro, de experiências em paisagismo, este predicado precisa ser reconhecido como sua razão-de-ser, seu mecanismo estruturante, seu motivo constitucional e, conseqüentemente, seu mais importante valor de preservação.
As experiências que tiveram, e têm, ocorrência ali também precisam ser mais bem compreendidas, pois diferem formalmente das praticadas em outras atividades, principalmente quanto ao fator tempo: são experiências de duração indeterminada, que podem levar décadas e, muitas vezes, depois de aparentemente fornecer certos resultados, apresenta outros, contrários aos primeiros. Na verdade, como já foi observado, só se pode estar certo do fim de determinada experiência, quando for inegável seu fracasso. Enquanto tudo estiver correndo às mil maravilhas, enquanto nada insofismavelmente definitivo acontecer, perdura a incerteza e considera-se que a experiência continua, pois manifestações do imponderável são sempre possíveis. Manter uma coleção permeada por múltiplos processos de interação e de sinergia demanda vigilância contínua e correção de rumos permanente.
De maneira geral, para a legião de fãs de RBM ainda não é (e talvez nunca seja) desnecessário dizer que experiências, mesmo as dele, por definição implicam em risco: podem dar certo... ou não. Uma vez que se percebe que determinado conjunto de plantas, por mais que se faça para a obtenção de melhoras em seu estado, continua a se afastar das condições razoáveis de saúde ou de exposição, torna-se imperioso modificar, redirecionar ou interromper o processo, sob pena de, materialmente, perder parte do acervo e, imaterialmente, o que é mais grave, ignorar (aniquilando) e aniquilar (ignorando) o patrimônio primordial representado por este fazer sumamente preservável, estabelecido e ensinado por RBM.
O tombamento do SRBM convém ser maximizado, isto é, aplicado não só aos elementos que lá se encontram e que fatalmente desaparecerão a longo prazo no processo sucessivo, mas também à sua qualidade experimental geradora de conhecimento. Desconsiderá-la equivale a não enxergar o grande valor, aquele que mais benefícios pode trazer à cultura e que, sem dúvida, foi o motivo explícito da doação do Sítio à Fundação próMemória, hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
RBM sofria ao imaginar seu trabalho mais importante ameaçado quando ele partisse e receava que sua mensagem não fosse captada. Embora pareça absurdo, por óbvio, que se diga isso, seus motivos para doação do Sítio não foram egoístas. Não devemos, portanto, tentar “recompensá-lo” como se o fossem. Arrebatado por sua missão, ele tinha algo de útil e de urgente para legar, comunicar, transmitir, algo mais valioso do que um terreno com uma coleção de plantas: uma contribuição para a cultura mundial – a capacidade de descobrir e de usar a flora adequada ao paisagismo, o que, em última análise, traduz-se na ciência de interagir com o ambiente. Diante disso, não convém assumir um conservadorismo carregado de inércia, mais fácil e menos comprometido. Manter folcloricamente, perante estudiosos de paisagismo do mundo todo, os restos mortais de experiências que não deram certo é semelhante à atitude de pais que impingem como obras primas quaisquer rabiscos dos filhos. Tal forma de proceder, muito comum atualmente, talvez até seja aceitável em relação à arte indígena ou primitiva, porém o trabalho desencadeado por RBM é, mais do que um produto, um fator e não apenas nos favorece, mas, com mais força, nos integra num movimento universal de desenvolvimento da cultura. Imaginar que ele doou seu Sítio só porque estivesse querendo ser imortalizado não é a melhor interpretação de que somos capazes. Agir em decorrência de (e para atender a) tal imperfeito juízo, buscando criar um parque temático do artista, ou templo de culto a sua personalidade, ao custo de estancar os processos que ele com clarividência instituiu e verdadeira obsessão fez funcionar, tampouco é a melhor homenagem devida a Roberto Burle Marx.
Nos sombrais do Sítio há inúmeras espécies, desentranhadas de regiões longínquas, ainda aguardando utilização.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Entrevista

Concedida à Augusto Burle da ‘FOLHA’, revista da Sociedade dos Amigos de Roberto Burle Marx, em 3/12/2008 por Robério Dias, Diretor do SRBM, e publicada em maio de 2009.

FOLHA: Para esta entrevista ser consistente, tenho que levantar algumas polêmicas, para que você as rebata dando a sua versão, já que eu acredito que você goste do Sítio tanto quanto eu. Primeiro quero assoprar para depois morder. Acho que naquela ocasião difícil quanto ao futuro do Sítio, você e o José Tabacow tiveram uma importância fundamental ao dar a orientação correta para o Roberto. Ele estava cheio de dúvidas, pensou até na Fundação Ford. Já imaginou se tivesse ido para uma Ford, que hoje, tecnicamente, está falida. A melhor solução, sem dúvida nenhuma, foi a do encaminhamento do Sítio para o governo federal. O Sítio está salvo, que é o desejo de todos nós: o seu conteúdo está preservado para as futuras gerações. Isso é muito importante e o Brasil deve isso a você e ao Tabacow.

Agora, no dia-a-dia da sua administração, você estabelece algumas polêmicas, embora eu acredite que até seja em benefício do Sítio. Para tentar esclarecer aos nossos leitores certas decisões suas, gostaria de primeiramente perguntar o seguinte: como você vê o futuro do Sítio?

ROBÉRIO: Em primeiro lugar, quero agradecer sua menção elogiosa à minha participação no episódio da doação do então Sítio Santo Antônio da Bica à então Fundação PróMemória. Tenho certeza de que o José também vai gostar, afinal, pelo que sei, é a primeira vez que alguém se manifesta sobre nosso papel naquela fase decisiva para o destino deste legado, a meu ver o mais importante, de Roberto. Quanto ao futuro, vai depender do correto entendimento do que é o SRBM; parece que pouquíssimos sabem o que ele é. A maioria confunde o Sítio com três coisas basicamente: uns pensam que é uma reserva natural. Essa é a mais grosseira das concepções. O Sítio não é uma reserva natural, não é por isso que ele foi tombado. Existe uma reserva sem importância, a partir da cota 120m do terreno, que está sendo reservada simplesmente porque ninguém vai lá. É uma mata secundária em recuperação, com invasão de bananeiras permitida em tempos antigos. As pessoas que pensam que Roberto legou uma reserva natural não o fazem conscientemente, mas são aquelas que acham que o Sítio deve ser regido por leis de preservação ambiental. Raciocinam da seguinte maneira: “O Sítio é composto de plantas e plantas... são naturais, logo deve ser regido pelas leis de preservação ambiental”. Isso equivale ao cidadão pensar que uma estátua de Aleijadinho é uma obra natural, um capricho geológico, por ser feita de pedra-sabão, um elemento natural. O absurdo chega a esse nível. Apesar do fato da vegetação ser natural, quem colocou as plantas do Sítio aqui e ali foi Roberto e de maneira cultural. O Sítio é um bem cultural.

F: Pelo que consta Roberto colocava as plantas de forma ordenada, sendo, portanto, uma coleção ordenada, está certo?

R: Vamos por partes. Ordenações existem milhares. Eu falei apenas da primeira concepção errônea, passemos à seguinte. A segunda é que o Sítio é um jardim de Roberto Burle Marx – “Logo não pode ser mexido porque não se pode adulterar uma obra de arte quando o artista não está mais presente”. Essa também é errada pelo seguinte: o próprio Roberto dizia que tinha feito jardins para tantos e não tinha um. Ele repetiu inúmeras vezes que aqui era o lugar de suas experiências paisagísticas. É como o ateliê de um artista. Num ateliê você vai encontrar uma obra-prima quase pronta num canto, vários esboços em outro lugar, um monte de telas rejeitadas em outro, suas ferramentas e tintas, experiências em andamento espalhadas, o ateliê de um artista é isso.

Bem, a terceira concepção é que aqui é um jardim botânico. Também é uma concepção primária. O SRBM tem plantas que Roberto selecionou, que estão se aclimatando, sendo multiplicadas e estudadas para saber como é a melhor forma de cultivo. Isso também é parte das experiências, mas num jardim botânico o que importa é cada espécie, a raridade e a diversidade. Aqui, qualquer um que passear pelo Sítio vai perceber que o que importa são os conjuntos, não os indivíduos. Essa é a grande diferença.

Então, façamos o seguinte: vamos balancear essas três concepções, uma reserva natural, uma obra de arte e um jardim botânico. Essa visão balanceada, por mais sensata ou bem comportada que pareça, tampouco dá certo, entenda-se bem, no que diz respeito à obtenção de base conceitual para gestão adequada. Para conservar o SRBM o que importa é entender em profundidade o que Roberto disse e aceitar que: “É um lugar de experiências paisagísticas”. Essas começaram quando Roberto foi a campo buscar o que não encontrava à venda nos hortos. Não satisfeito, ele passou a vida inteira inspecionando locais de vegetação intocada para descobrir plantas que tivessem valor paisagístico.

Lembro-me de uma excursão com o grande botânico Luiz Emygdio que, em determinado lugar, começou a descobrir coisas sensacionais – sensacionais para ele. Ali se lhe estavam abrindo as portas do conhecimento, num capim, numa pequena flor. Roberto, já impaciente, dizia: “Vamos, já está tudo visto”, mas Luiz Emygdio o conteve: “Agora você vai ter que esperar um pouco porque eu estou em pleno êxtase botânico”. Essa história ilustra a diferença de objetivos: um interessado em botânica, outro em paisagismo.

As plantas retiradas da natureza não vêm com manual de instrução. Aqui eram plantadas em locais em que ele achava que iam funcionar, o que nem sempre acontecia. Então a primeira experiência era descobrir o que fazer para que a vegetação que vinha de outro ecossistema se adaptasse aqui. Um exemplo bom disso são as Veloziaceae. Roberto adorava essas plantas, mas não arriscava mais trazê-las porque achava que morriam. Até o dia em que conheceu a Nanuza Menezes, outra excepcional botânica, que lhe contou o segredo: “Ela não morreu, Roberto, parece que está morta, mas é só continuar regando que ela revive”.

A partir daí Roberto fez excursões, às vezes quase que só para buscar velózias. Ele evitava trazer plantas que não iam pegar. Trazia as que sabia que poderiam sobreviver e, dessa forma, mantinha um nível de aproveitamento próximo dos 90 % . O problema era encher demais o caminhão. Tinha até um jardineiro, o finado Francisco Batista, especializado em acondicionar a preciosa carga para o transporte.

Algum tempo depois, quando Roberto dispunha de um número de plantas multiplicadas que achasse suficiente, ele as retirava do local onde estavam – geralmente o sombral – e as plantava em outro lugar no Sítio, já ensaiando uma composição estética, fazendo uma segunda experiência que era testar aquela vegetação em outro local, junto com outros espécimes, para ver se com o passar do tempo aquilo iria dar certo. Esse procedimento tinha mais vantagens: o sombral é limitado e não pode ser aumentado indefinidamente. À medida que as plantas iam se multiplicando, o sombral teria que ser multiplicado também. Retirá-las dali desafogava o sombral. Outra: se houvesse uma praga ou roubo no sombral, seria bom ter as mesmas espécies em outros locais do Sítio.

Esse é o grande legado de Roberto para o mundo, não é o Sítio em si, nem suas plantas, arquitetura ou obras de arte, mas o ensinamento de como fazer experiências paisagísticas, de como utilizar plantas inéditas. Isso não é folclore, e não deve ser tratado como tal, mas como contribuição à cultura universal do paisagismo.

F: Isso tudo que você está falando é indiscutível. Mas existem outras pessoas com uma visão, também de peso, que é a seguinte: manter o Sítio da maneira que era no momento da morte de Roberto, já que ele trabalhou aqui compulsivamente até o fim. Na minha opinião e na dessas pessoas, essa é a imagem que deverá ficar eternizada. Acho que intervenções que modificam o aspecto das coleções e da sua disposição fazem com que se perca o referencial de como era o Sítio com Roberto vivo e de como poderá ficar no futuro. Refute esses argumentos.

R: Essa visão, que você considera de peso, é ingênua e está completamente equivocada. Não é possível congelar o SRBM. Todas essas plantas vão morrer, lamento informar, pois tudo que é vivo morre. Todas as plantas, as plantas que puderem ser replantadas no seu devido lugar, serão replantadas. A idéia é essa.

F: Então você concorda?

R: Evidente. Mas nem sempre esse replantio é possível. Lamento ter que informar também à legião dos fãs de Roberto Burle Marx que as experiências dele também podiam dar errado. Por isso eram experiências: se ele soubesse o resultado, nem as faria. Experiência, por definição, pode dar certo ou não.

F: Deixa eu contrariar você um pouco. Vamos dar o exemplo da famosa mussaenda da entrada do Sítio, plantada por Roberto. Consta que ela morreu. Você pretende substituí-la? Como ficará a entrada?

R: Não, ela não morreu, foi transplantada. O caso é o seguinte: quando Roberto a plantou, ela era a primeira mussaenda aqui na região, pelo menos. Hoje em dia é a coisa mais comum, seu valor de raridade acabou. Ele zelava por ela como se fosse filho único, pois de fato era única. Mas já havia, ali na entrada, um grupo de arvoretas, cinco Crescentia cujete, popularmente coités, na beira do lago. Os coités cresceram e, com a plasticidade do terreno agravada por alagamentos eventuais, um deles acabou caindo sobre a mussaenda abafando-a. Se não a tirássemos dali, ela morreria. Transplantamos, porque nem a coloração rósea, característica das brácteas na época da floração, ela produzia mais, estava estiolada, num local péssimo. Não adianta insistir com a planta num lugar onde ela está indo de mal a pior, a não ser que você queira que ela morra. Então, em certas ocasiões, é necessário trocar de lugar. A mussaenda saiu de lá, está em outro grupo da mesma espécie e os cinco coités, muito mais difíceis de transplantar, continuam na entrada.

Isso que você chama de “polêmica” consiste nisso: alguns críticos se apegam a um detalhe insignificante e pessoal – é o tipo do raciocínio egoísta. Há que pensar no conjunto, não tirei a mussaenda dali porque quis, mas porque ela iria morrer, tirei porque tinha que salvá-la e, mais do que isso, por uma questão de princípios, princípios paisagísticos.

Quando respondi sobre o futuro do Sítio, era disso que estava falando. O que se pode manter intacto no Sítio são os princípios de paisagismo que foram adotados e estabelecidos por Roberto Burle Marx. A única coisa que se pode preservar sem tirar nem pôr é esse patrimônio imaterial que Roberto inventou e aprendeu com outros paisagistas do mundo e que fazia questão de transmitir o tempo todo. Ele doou o Sítio para que essa transmissão pudesse continuar. Um desses princípios é que cada planta deve ir para locais onde tem condições de se desenvolver bem. É o “óbvio ululante” do Nelson Rodrigues, tão difícil de enxergar, mesmo por essas “visões de peso”.

Outros princípios óbvios que algumas pessoas só não captam porque não querem: não se deve prejudicar uma coisa importante para favorecer outra de menos importância; não se esconde uma coisa bonita; não se exibe uma coisa feia; não se deixa uma planta morrer num lugar só porque ela sempre esteve ali. O ambiente muda. Um exemplo disso foi dado pelo próprio Roberto que plantou uma árvore à beira de um lago onde estava uma vitória-régia. A árvore cresceu, passou a fazer sombra e a vitória-régia iria morrer. Roberto teve que tomar uma decisão e retirou a vitória-régia do lago, porque é mais fácil transplantá-la do que uma árvore. Depois fez até outro lago e plantou a vitória-régia lá, em pleno sol. Isso é fazer jardim, isso é “ordenar a natureza pelo homem e para o homem”, como ele costumava dizer. Então é isso que temos de entender. As plantas do Sítio irão morrer todas. Daqui a cem anos haverá apenas um ou outro espécime que está aqui hoje. Já os princípios, estes durarão indefinidamente se formos capazes de os entender, observar, transmitir.

F: Mas vamos dar um exemplo, os jardins do Palácio de Versailles. Se a gente olhar uma pintura do jardim na época em foi feito e comparar com o jardim atual, não há praticamente alterações, principalmente, no seu desenho. É importante que as intervenções sejam feitas, e eu concordo em parte com o que você falou, mas sem deformar o que Roberto deixou.

R: Vamos examinar seu exemplo de Versailles. Você sabe se as plantas que estão nas pinturas dos jardins, da época de Luis XIV, são das mesmas espécies que estão lá no terreno hoje? Duvido muito. Eu não sei. Segundo: se é que Versailles já atingiu o estágio de imutabilidade eterna, quanto tempo levou para que se cristalizasse nessa forma definitiva? Quantas plantas foram trocadas, quantas experiências feitas? Ninguém sabe. Terceiro: e se uma praga mortífera incurável, um tipo de aids vegetal, atacar aquela espécie de árvores da aléa principal que são podadas em topiaria? Insistir-se-ia na mesma espécie? Quarto: Versailles está lá em Paris, num clima temperado. A velocidade do crescimento da vegetação lá é uma, aqui é outra. É como comparar um carro de fórmula um com uma carroça puxada por uma tartaruga. Roberto fez jardim tropical para nossas latitudes. E aqui é um local de experiências que, diga-se de passagem, não pararam quando Roberto morreu. As plantas não sabem de seu falecimento e continuam se comportando como se nada tivesse acontecido. Se Roberto estivesse olhando, com certeza modificaria muito mais. As plantas que estão aqui para ser testadas, muitas delas nunca foram usadas, nunca foram vistas, nem pela ciência. Num determinado local e, durante algum tempo, pode ser que a coisa funcione às mil maravilhas. Por exemplo, a Bauhinia blakeana. Roberto estava apaixonado por ela e, em determinada época, a usava em quase todos os projetos, mas hoje duvido que o fizesse tanto, porque após dez anos se constatou que elas ficam aleijadas, sofrem muito com as pragas, viram um verdadeiro exército de Brancaleone. Hoje sabemos que utilizá-la pode significar anos jogados no lixo, o tempo que durou o teste. Só se pode ter certeza que uma experiência acabou quando ela dá errado, porque, do contrário, a experiência continua.

F: Eu volto a insistir nisso: não é importante que uma pessoa que fique 10 anos sem vir ao Sítio o reconheça perfeitamente quando retorne?

R: Você está falando como se o Sítio estivesse irreconhecível.

F: Não estou dizendo isso. Estou querendo dizer que o Sítio, por tudo isso que você argumentou, o levou a fazer intervenções.

R: É evidente!

F: Mas algumas pessoas, inclusive alguns paisagistas, acham que essas intervenções têm sido um pouco fortes.

R: Essas pessoas não vêm ao Sítio, não sabem do que estão falando. Se eu tivesse um acesso de loucura e tirasse 90% da aléia de paus-ferro, elas talvez andassem por aqui sem dar pela falta. Elas estão falando de idéias que passam em suas cabeças sem a necessária correspondência com a realidade. Roberto dizia que detestava fórmulas e adorava princípios, pois bem, muitas dessas pessoas, que vêm aqui de 10 em 10 anos, apegam-se a coisas mais precárias ainda do que fórmulas, apegam-se a uma determinada plantinha que é das duas ou três de que se lembram. O caso da mussaenda é uma boa prova do que digo.

F: A informação que eu tenho é que as pessoas vieram aqui, tiraram fotos e ficaram meio tristes com as modificações, mas você está achando que não é isso.

R: Uma foto não explica nada com relação às mudanças exigidas pela dinâmica natural. E deve-se levar em conta que, se você for a Paris com um grupo hoje, certamente haverá alguém que vai dizer: “Paris não é mais a mesma, eu estive aqui em 98 (ou 57), aí sim, era uma maravilha”. Sempre tem alguém insatisfeito. Se a pessoa me disser qual a modificação com que não concorda, qual a planta, mas em geral ninguém nunca faz isso e, mesmo que fizesse, o proceder que ela vai recomendar não tem que corresponder exatamente ao que eu acho melhor. Replantar aquela mussaenda no mesmo local, tendo que remover ou desmembrar o grupo de coités, por exemplo, é algo que eu rejeito. É claro que estou aberto a sugestões, mas me reservo o direito de aceitá-las ou não. Agradeço ao Evanir de Souza e à Cecília Beatriz que, em lugar de ficarem tristes, vieram falar comigo e me deram ótimas idéias.

Quando vim para cá em 1995, para ser diretor, encontrei um matagal exuberante em todos os setores. Roberto, como você lembra bem, tinha muita vitalidade e por isso mesmo não parava no Sítio, principalmente nos últimos anos: numa semana estava em Kuala Lumpur, na seguinte em Washington, na outra no Rio Grande do Sul, fazendo projetos e conferências para lá e para cá e deixava um grupo tomando conta do Sítio.

F: Mas ele cobrava do grupo.

R: Cobrava em termos, porque ele não estava enxergando mais o que era feito, a visão dele havia piorado tanto que para reconhecer uma pessoa precisava chegar a 2 metros dela. Comparo Roberto a Beethoven, pois tanto um quanto outro foram prejudicados no sentido mais necessário para o desempenho de suas artes e nenhum dos dois ficava alardeando isso aos quatro ventos. Não era bom para os negócios. Beethoven disfarçou o quanto pode sua surdez e Roberto escondeu muito bem sua “cegueira”, mas não distinguia mais nada à distância. E as pessoas que estavam à volta dele nessa época, que tinham por obrigação impedir que uma plantinha de 10cm crescesse a ponto de se transformar numa árvore e obstruísse coisas importantíssimas, retirando toda a nitidez de intenção dos projetos e a possibilidade de observação das plantas e das composições, essas pessoas se omitiram. Provavelmente pensaram que, se Roberto não estava falando nada, era melhor cruzar os braços, porque assim não se arriscariam: “Com esse negócio de ecologia, quem sabe, pode ser que alguém não goste, vão dizer que estou matando seres vivos; afinal Roberto está achando bom!”. É bastante “esperto” da parte de um funcionário pensar assim para esconder seu medo de compromisso, disfarçar sua incompetência, ou preguiça, não sei. O fato é que deixaram as plantas se amontoar caoticamente, como eu vi canteiros aquáticos passarem a ser canteiros terrestres, lagos ficarem entupidos de sedimentos, com plantas invasoras de terra firme nascendo neles, rochas e canteiros rupestres cobertos com uma camada de 40cm de folhas secas e mato. Também encontrei inúmeras plantas importantíssimas, que já deveriam ter sido plantadas muito antes, ainda acondicionadas em suas latas, “mamando” nos sombrais. Palmeiras como a Beccariophoenix madagascariensis, as Copernicia macroglossa, as Phoenicophorium borsigianum, que representam um patrimônio botânico precioso, perdidas no meio de mudas corriqueiras. Essas plantas tiveram que ser plantadas imediatamente na terra, pois, esquecidas, já haviam esgotado todo o substrato e suas raízes retorciam-se sem espaço nos respectivos recipientes. Então, como é que se pode exigir que o SRBM permaneça igual? Jogando estas plantas no lixo? É por isso que eu digo que tais pessoas não sabem do que falam.

Por exemplo, quando Roberto descobriu as grandes rochas na região dos lagos (ele comprou aquele terreno talvez por causa dessas rochas) mandou tirar todas as árvores da frente. Por quê? Árvores ele podia comprar numa chácara, mas ninguém entra num shopping para adquirir rochas de 20 mil toneladas. Então ele arrumou todo o cenário para valorizá-las e criou lagos para refleti-las, isto é, duplicou o grupo de rochas com os reflexos, como se tivesse achado pouco.

Numa excursão que fizemos à Bahia, na volta ele nos chamou a todos para o Sítio, o que não era normal. Disse que tínhamos algo para fazer. No dia seguinte, às 6 da manhã, já estava cantando óperas, acordando todo mundo. Chamou os jardineiros e veio com o caminhão, ainda carregado, de marcha a ré até próximo ao lago. Ali distribuiu as plantas, umas aqui, outras acolá e fez uma composição que ocupava todo o terreno em forma de anfiteatro. Achei aquilo sensacional, porque era como criar uma sinfonia ao reger. Pois bem, quando voltei aqui em 1995, o matagal tinha tomado conta de tudo e já havia uma árvore enorme tapando as rochas. Ora, eu sei o que Roberto queria: ver aquelas rochas. Ele fez a composição toda para isso e não para deixar uma figueira nativa bloquear a visão. É claro que Roberto, quando passava ali, não via. Quem trabalhava oito horas por dia, no Sítio na época, e tinha obrigação de enxergar isso, se omitiu ou, como se diz, “não ganhava pra isso”. Então, eu tive que tirar essa árvore, porque sabia a intenção de Roberto. E sou criticado e processado até hoje. E assim aconteceu em muitas outras situações.

Quero deixar bem claro que não estou me referindo à gestão de José Tabacow que foi diretor durante um ano apenas, vindo ao Sítio só dois dias em cada semana, pois morava no Espírito Santo e aceitou o encargo com espírito de sacrifício, só para colocar ordem administrativa na casa, naturalmente à deriva imediatamente após o falecimento de Roberto.

F: Quando você veio para cá em 1995, havia um início de catalogação das plantas. Como está isso hoje?

R: Esse início era muito incipiente. Roberto não era muito organizado, não tinha paciência para ler um contrato, não era chegado à burocracia de inventários, deixava isso por conta de outras pessoas. Por exemplo, num belo dia ele avisava que viria ao Sítio um amigo especialista em Cycadaceae. Então mandava fazer umas estacas de marcação. A pessoa chegava, ia-se percorrendo o jardim, fincava-se a estaca numerada, alguém anotava. Daí a meia hora, Roberto chamava para tomar alguma coisa ou almoçar e depois a marcação degringolava. Assim foram feitas diversas catalogações que começavam e não tinham continuidade. Os encarregados de prosseguir o trabalho iniciado preferiam, como é comum e bem mais fácil, imitar o grande homem nos defeitos do que nas qualidades.

F: Mas o Luiz Emygdio não deu uma ajuda nesta época?

R: Quando ele estava aqui ajudava sempre, era um auxílio inestimável, mas os serviços da catalogação e inventário nunca foram eram encargos dele e sim dos ajudantes de Roberto na época, que ficaram devendo muito. Nossa planta de palmeiras era um desenhozinho à mão livre, sem escala, um rascunho, uma vergonha.

Um dia, numa das primeiras reuniões do Conselho do Sítio (eu já diretor), anunciei que tínhamos começado o PILAP (Projeto de Identificação e Localização de Árvores e Palmeiras), baseado numa planta em escala, feita em AutoCad por um serviço de topografia. Expliquei que estávamos locando com trena, identificando e fazendo exsicatas dos espécimes, isso com o auxílio da botânica Tânia Wendt, da UFRJ, através de um convênio. Duas pessoas, que depois pediram demissão do Conselho, reclamaram, dizendo que esse trabalho já havia sido feito pela anterior equipe técnica do Sítio e não havia necessidade de refazê-lo. Surpreso, perguntei onde estava o inventário e responderam que no Jardim Botânico e na Rural, onde trabalhavam. Como ainda não tivéramos nem notícia desse trabalho perfeito, pedi então que me mandassem o que tinham e fiquei felicíssimo, aguardando. Nesse mesmo dia, fomos dar uma volta por aqui, porque a Nanuza, presidente do Conselho do SRBM então, viera de São Paulo, alertada de que o Sítio estava sendo devastado. Ela viu tudo e ficou satisfeita, aliviadíssima porque os que a haviam alarmado o fizeram com uma tragédia inexistente.

Na volta, na descida, vimos uma árvore de uns 4 metros, que ficava ali num local central, denominado Largo do Cascalho. Então uma das conselheiras que reclamara da suposta duplicação do levantamento botânico, virou-se para mim e perguntou que planta era aquela. Hoje sabemos que era uma Elaeophorbia drupifera, mas na época não tinha idéia e respondi que no Sítio sabíamos apenas que pertencia à famíliaEuphorbiacea. Quando ela disse, num tom professoral quase autoritário, que precisávamos então urgentemente identificar e fazer exsicatas daquela planta, retruquei: “Ué, você não me disse que esse trabalho já estava concluído?” As duas conselheiras se entreolharam e não tiveram resposta. Na verdade, uma árvore de 4 metros, lindíssima, raríssima no Brasil, de copa semi-esférica e, portanto, extremamente conspícua, num dos lugares mais acessíveis do Sítio, elas mesmas nunca haviam visto.

Mas a história ainda não acabou. Passados uns meses recebi uns três ou quatro cadernos, cujas primeiras páginas estavam preenchidas com letra infantil, de alunos talvez do 1º ano da faculdade, com uma lista de plantas exígua, com nomes tais como Allamanda cathartica, Dracaena marginata, que todo mundo conhece. Quer dizer, não foi feito quase nada. Tal era o levantamento completo e definitivo que se gabavam de haver orientado.

Agora temos dois inventários georreferenciados: o PILAP (Projeto de Identificação e Localização de Árvores e Palmeiras) e o PILOG (Projeto de Identificação e Localização de Grupos). Grupos são vegetais que não podemos marcar individualmente. Por exemplo, um grupo de filodendros que tenha 38 num local, não dá para marcar todos eles, ou um grupo de Bulbine que pode ter milhares de indivíduos.

Tudo isso está publicado na minha tese, orientada pelo Prof. Dr. Jorge Xavier da Silva, e, quem quiser dar uma olhada, é só acessar o site da UFRJ, Geografia, Laboratório de Geoprocessamento, LAGEOP. Temos, nos anexos, os dois levantamentos que até fevereiro de 2008 contavam com mais de 1.500 árvores e palmeiras e quase 2.000 grupos.

F: Resumidamente, já foi feita muita coisa, mas ainda tem muito por fazer, é isso?

R: Sempre vai ter. Ainda não paramos. Temos que atualizar constantemente. E, quando acabar, será necessário começar de novo, se é que vai acabar um dia.

F: Outra pergunta que cabe aqui: uma função que eu achava importante o diretor do Sítio ter é aumentar tanto em número quanto em variedade a coleção que Roberto deixou de determinadas plantas. Não acha?

R: Acho. E tanto acho que rejeito a concepção de que o Sítio deva ser engessado como estava por ocasião do falecimento de Roberto. O fato é estamos aumentando a coleção mesmo sem querer, pois não é nossa prioridade. Muito mais importante do que ampliar é fazer o back up do acervo vegetal, isto é, conseguir multiplicar as plantas da coleção (as cujo número atualmente é escasso) e replantá-las também em algum outro lugar do Sítio para minimizar a probabilidade de perdê-las. É seguir o velho e bom conselho de não deixar todos os ovos na mesma cesta. Minha idéia é a seguinte: depois do furacão Roberto, do fenômeno Roberto, é preciso uma geração, pelo menos, para organizar o que ele deixou. Há tanto por fazer que não temos condições nem perspectivas de organizar excursões ou coisas parecidas. Mas nem por isso deixamos de aumentar a coleção e isso é feito natural e quase involuntariamente, porque hoje em dia, com a Internet facilitando o intercambio e as associações, existe muita gente que passou a ser especialista em palmeiras, em ficus, etc. Visitou-nos ontem uma arquiteta que tem coleção de bambus e quer trocar conosco. É evidente que sempre trocaremos o que temos em duplicata pelo que não temos. E as pessoas ficam felizes de contribuir para povoar o Sítio com figurinhas faltantes. Recebemos muitas palmeiras da Amazônia, obtivemos também a Ceroxilon qüindiuensis, planta nacional da Colômbia, considerada a mais alta palmeira do mundo (70m), através de sementes que conseguimos fazer germinar. Vamos torcer para que se adaptem, o que vai ser difícil, pois seu habitat natural fica a 3.000m de altitude nos Andes.

F: O Jardim Botânico, por exemplo, tem uma coleção líder de orquídeas que tem um mantenedor. Você acha viável alguma coleção do Sítio adquirir um status que interesse um mantenedor ajudar o Sítio de maneira substancial?

R: É claro que é viável. Nem é necessário adquirir status, porque as coleções de aráceas do Sítio são das que têm mais status no mundo. A coleção de veloziáceas do Sítio talvez seja a maior do mundo.

F: Não é interessante publicar um livro sobre essas coleções?

R: Interessantíssimo. E foi publicado um, em cuja reedição estamos pensando agora, pois já está esgotado. Só para dar uma idéia do interesse disso, em 1999, por ocasião da pesquisa para este livro, “Plantas de R. Burle Marx” de Harri Lorenzi, foram descobertas, só na coleção de Araceae, nove espécies novas de filodendros – plantas que estavam incógnitas nos sombrais do SRBM. Mas se aparecer alguém que queira publicar outros, temos aqui muita coisa para ser feita. Além de projetos de livros e catálogos de inúmeras coleções, temos n projetos, como o de reestruturação do sombral, de 16.000 metros quadrados, aprovado pelo IPHAN, que aumenta o teto da coleção de plantas. O projeto foi para Brasília para ser aprovado pela lei Rouannet. Mas o parecer de alguém de lá foi que aumentar para 9,5 metros seria muito, e sugeriam, se quiséssemos vê-lo aprovado, manter a mesma altura. Ora, o projeto foi feito exatamente para permitir o aumento do pé direito, porque a vegetação está batendo no teto, atualmente com 6 metros no ponto máximo. Muitas plantas estão perfurando o sombrite, logo é preciso aumentar a altura. Um projeto caro como esse, é preferível não fazer do que repeti-lo com a mesma altura. Esbarramos sempre com o medo, a tônica é dizer não para não correr o risco de errar. Esses agentes tão “zelosos” precisam se dar conta de que suas ações – empecilhos de ações, na verdade – ao invés de ser o que pretendem, isto é, ações preservacionistas, muitas vezes são obstáculos à preservação mesma que julgam estar defendendo.

F: Robério, infelizmente tem uma funcionária que passou por aqui, parece que uma museóloga, fez um processo contra você por derrubada de árvores...

R: Não se sabe quem foi; com certeza não foi a museóloga. É um processo de autoria anônima.

F: E saiu recentemente no jornal uma coisa chata porque a gente sabe que isso não está ocorrendo, mas eu não sei se você chegou a dar uma resposta à altura: uma jornalista do JB o chamou de “louco do jardim”, alegando que você derrubou mais de 100 espécies nativas da Mata Atlântica, entre elas jequitibá, pau-brasil, paineira, cedro, mangueira e, no lugar das “lendárias árvores”, plantou bromélias. Tem fundamento isso?

R: É evidente que não. Em primeiro lugar, vamos imaginar uma área completamente intocada na Amazônia do tamanho do SRBM (400.000m²), onde não haja ninguém, nem índios. Quantas árvores ela acha que morrem nessa área, em 10 anos? Calculando que cada árvore ocupe 50m², teríamos, no mínimo dos mínimos, 8.000 árvores e, imaginando que cada uma viva 100 anos, para que haja sustentabilidade é forçoso que 10% morram a cada 10 anos, isto é, 800 árvores. O índice de mortalidade das árvores do SRBM estaria, portanto, oito vezes menor do que no ideal de paraíso do mais fanático dos ambientalistas! E ela ainda reclama! Já começa por aí: essa jornalista acha que as árvores são coisas eternas ou que todas elas duram mais de 800 anos. Muitas das árvores do Sítio morreram, mas nunca se tirou um jequitibá daqui. Retiramos algumas mangueiras moribundas por causa da praga “seca da mangueira” que é incurável, e cortamos outras porque já estavam infestadas. A tal figueira do lago foi retirada. E uma coisa posso afirmar: jamais foi erradicada sequer uma árvore saudável do Sítio. Todas as que tiveram sua remoção decretada eram plantas clandestinas que se imiscuíram contra qualquer intenção ou planejamento de Roberto. Outra: a única coisa lendária que existe aqui é a capacidade de Roberto de ordenar a natureza. Não temos nenhum vegetal lendário, isso é ficção. Insufladas pelo sensacionalismo jornalístico e pela cultura do ambientalismo xiita, algumas pessoas não distinguem e acham que qualquer capim aqui foi plantado por Roberto em pessoa, com as próprias mãos. É muito fácil posar de defensor da natureza acusando de derrubar árvores alguém que tem por obrigação cuidar do paisagismo de uma área. É como se um diretor de Jardim Zoológico mandasse o tratador tirar os carrapatos dos rinocerontes e no dia seguinte saísse publicado no jornal que o “Louco diretor do zoológico está acabando com a fauna preservada naquela instituição”. Quer dizer, considerar carrapatos fauna preservada pelo zoológico é o mesmo que essa jornalista fez com relação às plantas no Sítio. Só se retiram plantas que estejam atrapalhando o paisagismo. Já imaginou um museu cujas obras expostas se avolumassem continuamente, a ponto de ir reduzindo o espaço entre elas até que fosse impossível alcançá-los física ou visualmente? E, ainda pior, se houvesse inúmeros elementos "penetras" que constantemente se imiscuíssem entre aqueles que precisam ser mantidos? Pois é este o caso do SRBM. As plantas não param de nascer, de se agigantar, de combater umas às outras, de obstruir as vistas, de reduzir a insolação. Somente são retiradas aquelas cuja presença esteja contrariando os princípios que Roberto ensinou. Que plantas são essas? A maioria é nativa, ou então são árvores que já estão no Brasil há muito tempo, como a jaqueira, por exemplo. Se uma jaqueira for encontrada aqui, tem que ser retirada, porque não faz parte do projeto de Roberto, é uma invasora, pertence à classe que eu chamo de plantas clandestinas. Essas plantas, que poderiam ser retiradas discretamente até por uma criança, não o foram porque Roberto não enxergava. E ninguém mais as retirou. Eu é que tive de tirá-las quando já estavam com um caule de 20 cm de grossura. É o tal negócio, talvez a melhor defesa seja o ataque. Antes que se diga que deixaram o Sítio chegar ao ponto de se ter que tirar árvores para poder ver o jardim, essas pessoas já começam a atacar preventivamente, para não serem apontadas como inertes.

F: A nossa entrevista está ficando rica, você está dando suas opiniões, acho que todas elas abalizadas. Como tudo na vida tem um contraditório, as pessoas podem ou não concordar com você. Mas, posso lhe garantir, que tem muita gente que acha uma intervenção forte no Sítio essa sua idéia de construir um teleférico, o descaracterizando. Desculpe estar sendo tão incisivo.

R: Olha, eu desconheço que exista muita gente contra. Todas as pessoas a quem eu falo sobre isso gostam da idéia, acham ótimo. Quando conversei com o César sobre o assunto, ele disse que, numa viagem que fez com Roberto à Alemanha, ao usarem um teleférico no jardim botânico de Stuttgart, Roberto comentou que aquilo seria interessante para o Sítio.

F: Não pretendo pôr em dúvida a afirmação de César, mas acho que foi uma opinião dada por Roberto no entusiasmo de um momento.

R: E olhe que o teleférico em que eles viajaram era fechado numa cabine, e o que estamos propondo para o Sítio é aquele ecologicamente correto, de cadeirinha. E ele não passaria por cima do Sítio, e sim na servidão, no limite. Por que esse teleférico? A visitação ao Sítio é feita a pé. Evitamos ao máximo o trânsito de veículos, de carros. É o nosso caminhão de lixo ou de material que anda por aqui, e olhe lá. Às vezes, quando há um evento, permitimos o estacionamento, mas não é para se estar andando de carro por aqui, para cima e para baixo. A visitação hoje é feita até a cota 50m, onde fica o ateliê. Da cota 5m, onde está o prédio da administração até lá, sobem-se 45m num percurso de, talvez, uns 800m de extensão.

F: É uma subida um pouco violenta.

R: É violenta num trecho. Para algumas senhoras é desagradável, para pessoas com deficiência, impossível. Para essas pessoas liberamos o carro até o nível da casa e dali até o ateliê a subida é bem mais suave. Acontece que já existe uma estrada pronta, pavimentada, até a cota 120m, de onde temos uma belíssima vista da baía de Sepetiba. Isto é, o mais caro já foi feito. Lá em cima está o que eu chamo de “jardim secreto” de Roberto. Ele, cioso de sua coleção, plantou as mais raras palmeiras naquele local, desconfiado de que já havia gente querendo roubar sementes. É uma pena que isso esteja escondido do público ainda hoje. Roberto doou o Sítio para que se tornasse um local de estudos de paisagismo, de botânica, de preservação da natureza. Estamos devendo essa parte à população ainda. Então qual é a solução? Que tal um teleférico? Aí fomos ver se o IPHAN gostava da idéia. O IPHAN, de quem eu mais tinha medo, não só adorou, como teceu loas ao projeto.

F: Desculpe discordar de você, mas você está com muito cartaz no IPHAN. Eles aprovarem, sem opor nenhuma resistência, um projeto que interfere tanto no Sítio é uma coisa inacreditável.

R: Bem, se você não acredita, eu posso lhe mostrar o parecer. Mas você não está perguntando. Você, então, é um dos que acham o teleférico ruim.

F: Sou. Mas respeito a sua opinião, quero ouvi-la e deixar claro que não duvido de você e não preciso ver o parecer.

R: Se eu propus o teleférico, é porque acho bom. Não vejo nenhum problema. Aliás, não conheço nenhum lugar do mundo que tenha teleférico e que as pessoas não adorem. Você acha que o teleférico proposto é o que? O bondinho do Pão-de-Açúcar? Não é. O teleférico vai passar a 3 ou 4m do chão, ou até menos, rente ao morro, do lado de fora do Sítio, ou em cima da divisa, na pior das hipóteses, se não deixarem fazer na servidão. O teleférico cruza a estrada pelo alto, constituindo-se no outdoor de si próprio, vai ser um chamariz e vai evitar estacionamento no Sítio, porque este passará a ser do outro lado da estrada, o que resolve mais um problema nosso. É uma pena que as pessoas estejam medrosas, com fantasmas na cabeça, achando que o sol será bloqueado, pois nem saberão que existe teleférico a não ser que estejam andando nele. E vão percorrer suavemente 600 metros de comprimento e 120 de altura. Chegando lá em cima, vão contemplar uma vista inédita, da baía de Sepetiba, e ver as belezas que Roberto preparou e que poucos conhecem. Então, essa é uma solução, não é problema.

F: É discutível essa sua afirmação. Apesar das suas explicações, mantenho a minha opinião que o teleférico não tem nada a ver com o Sítio.

R: Eu pensei que estivesse dando entrevista a um repórter neutro, e não a alguém que estivesse aqui para discutir comigo.

F: Não quero absolutamente discutir ou mesmo emitir opiniões pretensiosamente definitivas, mas, sim, levantar, se você permitir, algumas questões a serem esclarecidas para os nossos leitores:

1) Como economista que sou, gostaria de saber se foi feito um estudo de viabilidade econômica.

Como proprietário de casa em condomínio que tem teleférico, quero alertar que os riscos de eventuais acidentes existem (já ocorreram alguns no meu) e que os custos de manutenção são muito elevados. Qualquer erro de estimativa de receita pode deixar o Sítio numa situação ainda mais difícil quanto à manutenção, agravando, por falta de recursos, os problemas já existentes.

2) Como o teleférico proposto passará por cima da Estrada Roberto Burle Marx (antiga Estrada da Barra de Guaratiba), que tem trânsito relativamente intenso de veículos, gostaria de saber se o DER, ou outro órgão responsável, autorizará.

3) Acho, sinceramente, que a compra ou o leasing de um simples veículo poderia resolver o problema do transporte dos visitantes à parte superior do Sítio. Naturalmente esse serviço extra seria cobrado.

R: Quanto à segurança, os teleféricos são usados há séculos na Europa, bastante satisfatoriamente. Além disso, seria algo terceirizado, o que significa que não haveria dispêndio de recursos na sua implantação, ao contrário, teríamos uma receita por ceder o direito de explorá-lo, receita essa que poderia ser usada para sanar os problemas que você citou. As pessoas que são contra o teleférico, que alicercem suas idéias, em vez de dar simplesmente palpites na base do “achismo”. Se estamos dizendo que o teleférico é interessante para o Sítio, porque resolve o problema de estacionamento e de acesso, além de permitir a visão de riquezas que Roberto deixou e que não estão sendo vistas hoje, então tem razão de ser. A idéia de levar as pessoas até o alto de carro foi a primeira examinada e rejeitada (até a Carta de Florença o desaconselha): o impacto é desaconselhável, pois não tem sentido ficar um veículo subindo e descendo o tempo todo, destruindo a calma do local, poluindo (carro elétrico não dá) e incomodando, na ida e na volta, os grupos que estariam descendo. Quanto à autorização dos órgãos responsáveis, também estou preocupado. Essa questão ainda não foi apresentada. A nosso favor temos que o bondinho do Pão de Açúcar também passa sobre vias movimentadas. Mas isso é outro problema.

F: Gostaria que você descrevesse as riquezas que não estão sendo vistas.

R: A vista lá de cima, a restinga de Marambaia, o manguezal, a cisterna, a paisagem das touceiras deDendrocalamus giganteus (bambu gigante), a coleção de palmeiras, a coleção de buganvílias, a coleção de aloés, a coleção de ixoras, tudo isso na descida, o bosque dos guapuruvús, o ateliê visto do alto. Quer dizer, é muita coisa para ser observada, em termos de área é mais do que existe aqui embaixo. Lá em cima, haverá também o projeto de ampliação da capacidade hídrica que utiliza uma grande rocha como dique para um reservatório natural.

Então, dizer que o teleférico é ruim sem ao menos saber dessas vantagens e das condições de sua implantação seria o que? Zeloso? Cuidadoso? Próprio dos verdadeiros guardiões do legado de Roberto? Nada disso. Saiba que existe em Nova York um museu, o Guggenheim, do arquiteto Frank Lloyd Wright. Ele percebeu que visitar museu é interessante, é bom, instrutivo, mas cansa; então criou um elevador para que as pessoas subam de uma vez e, numa rampa suave, vejam as obras na descida. O resultado é que quando chegam ao final da exposição estão prontas para fazer outra coisa que não seja descansar. O princípio é o mesmo. Existem várias justificativas para esse teleférico. É um equipamento que não agride nada, está programado para 100 pessoas por hora, de maneira que de 15 em 15 minutos é formado lá em cima um grupo de 25 pessoas que pode descer, já vendo as belezas do Sítio sem se cansar. Elas vão ter acesso a tudo: a idéia é essa. Quando falei dele à então presidente do IPHAN, Dra. Maria Elisa Costa, filha do Lucio Costa, ela vibrou. E achou melhor ainda quando lhe disse que o teleférico poderia mais tarde ser estendido até o alto do morro, donde veríamos nos dias mais límpidos desde Itaipu até a Ilha Grande, tendo aos pés do outro lado a praia de Grumari – a mais bela e preservada do Rio – e, quem sabe, descer a outra encosta até o Museu do Pontal. Já imaginou turistas na saída deste museu tomando o teleférico, passando pela natureza mais espetacular de nossa cidade e descendo no SRBM? Seria uma coisa sensacional, única no mundo: um transporte entre dois museus num programa de cultura e natureza em doses estonteantes!

F: E o Conselho do Sítio? Qual o papel dele?

R: O Conselho é consultivo e composto de pessoas de cultura que conhecem e amam o Sítio. Sua última ação foi a elaboração das Diretrizes para o Tratamento do Acervo Natural Botânico e Paisagístico do SRBM – um documento pioneiro e da maior importância. O Conselho serve para nos aconselhar, além de deter o poder de indicar e retirar diretores. Isso significa que não sou obrigado a seguir conselhos que eu não ache bons, porque a responsabilidade é minha. Raciocinando por absurdo, num exemplo altamente improvável, vamos imaginar que o Conselho fique louco e me diga para tirar todas as árvores do Sítio. É evidente que não vou fazer isso, porque seria preso e acabaria para mim a carreira de paisagista. Qualquer membro do Conselho tem liberdade de convocar reuniões para tratar dos assuntos que lhe pareçam discutíveis, pois não tenho tempo para consultas quanto a mudanças relativas à vegetação, que acontecem diariamente. Agora, coisas grandes como o projeto do novo sombral, o Parque Roberto Burle Marx aqui em frente (isso é uma das coisas do futuro do Sítio), o teleférico, que faz parte desse parque, o projeto de ampliação da capacidade hídrica, o projeto de criação de uma área de exposições com reserva técnica, sala de projetos e, uma coisa que também é para o futuro do Sítio, o Memorial Botânico Roberto Burle Marx, isso tudo são projetos que, depois de discutidos no Conselho, são enviados ao IPHAN porque há tempo para serem discutidos, um, dois anos. É assim que é feita a coisa. O Conselho pode, se não estiver satisfeito com a minha atuação, me tirar da direção a qualquer momento. Comparo a posição de Diretor do Sítio ao cargo de técnico de futebol. Na hora em que um jogador se machuca, o técnico não tem tempo de se reunir com o presidente do clube para saber quem vai entrar no lugar. Ele decide quem vai bater o pênalti, sem consultar outras pessoas. Em compensação, se o time começar a perder, tira-se o técnico.

Alguns projetos do Sítio, inclusive o do Teleférico, foram analisados e estão na minha tese, que pode ser encontrada através do endereço http://sitioburlemarx.blogspot.com . É um blog que reúne oslinks para tudo o que foi publicado por nós na Internet. Na tese podem ser encontrados os levantamentos feitos até fevereiro de 2008 e também um banco de dados onde figuram todas as ações empreendidas com relação ao acervo natural botânico e paisagístico, avaliadas desde oito pontos de vista: o botânico, o ecológico, o estético, o educacional, o institucional, o econômico, o horticulturista e o experimental. Explico: depois que cada intenção de mudança (que pensamos ser conveniente ou necessária) recebe essas oito notas, uma segundo cada ponto de vista representado por eixos de valoração, é que podemos calcular a resultante e, caso positiva, executá-la. Na tese está tudo explicado detalhadamente.

F: A gente espera que você fique na direção mais 10, 15 anos, mas isso em termos de Sítio é muito pouco. O que você deixará como legado para os futuros administradores?

R: Isso é uma coisa que me preocupa. Quando vim para cá, não tinha nada palpável, a não ser o que aprendi com Roberto de projeto paisagístico e de bom senso, que ele fazia questão de transmitir a todos, o tempo todo. Ele não escondia o pulo do gato: se alguém no escritório, até mesmo o boy, falasse alguma coisa acertada, que ninguém tinha visto, a respeito de um projeto, Roberto fazia questão de adotar. Ele tinha uma coisa chamada honestidade intelectual, não queria dizer que sabia mais que os outros. Normalmente sabia, mas se alguém desse uma idéia melhor, ele adotava instantaneamente.

Outra pessoa que me ajuda até hoje é o José Tabacow. Mesmo já tendo deixado o Conselho do Sítio, é para quem ligo em primeiro lugar quando tenho alguma dúvida referente a assuntos do SRBM e ele pacientemente ouve meus problemas e me dá excelentes sugestões.

Mas, voltando à pergunta, o que quero dizer é o seguinte: é necessário que a pessoa que venha para o Sítio, além da formação adequada, entenda duas coisas: qual é a missão do Sítio e em que consiste seu patrimônio. A minha tese trata exatamente disto. Na reunião do Conselho do IPHAN que decidiu que o Sítio seria tombado, houve uma discussão. Foi no dia 10 de agosto de 2000, numa sessão comemorativa dos 100 anos de Gustavo Capanema. Nessa reunião o relator, Ítalo Campofiorito, apresentou o processo favorável ao tombamento. Outro conselheiro, Nestor Goulart, contrapôs: “Como se vai tombar um jardim, se as árvores vão morrer? Como se faz?” Aí o Ítalo retrucou dizendo que as pessoas que trabalhavam no Sítio sabiam, pois trabalharam com Roberto e aquilo lá já estava tudo listado. O Conselheiro Joaquim Falcão então disse que o fato de ter gente que trabalhou com Roberto não queria dizer nada, porque havia outras e que nós brigávamos muito, o que não deixa de ser verdade. Disse também que não bastava uma lista do acervo, era necessário que tudo estivesse localizado numa planta. Formou-se uma discussão entre alguns conselheiros. Eu estava presente porque todos os diretores de museus tínhamos sido convidados (apenas para assistir), mas principalmente porque o tombamento do Sítio me dizia respeito. O presidente do IPHAN, então Dr. Carlos Heck, lá pelas tantas me chamou para dar o meu palpite (a ata inteira dessa reunião está na sessão “Anexos” da minha tese). Eu disse que muita coisa teria que ser discutida ainda sobre tombamento de jardins, que não bastava existir uma lista com a localização de cada espécie, porque as coisas mudam. Contei até a história do lago, da vitória-régia e disse que isso acontece o tempo todo. Resumindo: todos gostaram da discussão de um modo geral e o presidente propôs, que já que o Sítio pertencia ao IPHAN e, como era o IPHAN que fazia o tombamento, estávamos com a faca e o queijo na mão para empreender uma vasta discussão sobre o tema, ficando o Sítio desde aquele momento tombado, com o que todos concordaram. A partir daí fiz um trabalho, que enviei aos interessados e envolvidos, que foi até publicado na Folha, sobre o que seria preciso observar para um correto tombamento, vislumbrando mesmo a possibilidade de algum recurso extra. Até hoje não tive resposta de ninguém, ninguém pegou essa bola para rebater, não houve nada em termos de discussão teórica institucional.

Em 2003 comecei o doutorado, um doutorado, digamos assim, em legítima defesa contra as críticas ao meu modo de dirigir o SRBM e para entender porque as pessoas insistiam em tanta coisa que eu sabia ser errada. Enfronhei-me na teoria sobre patrimônio e descobri que a causa da incompreensão que paira sobre o Sítio reside, em última análise, na classificação de patrimônio vigente baseada na dicotomia material/imaterial. A meu ver (está na minha tese) todo patrimônio cultural é imaterial. É o significado, a explicação, a demonstração, a valorização da capacidade operacional e do conhecimento das leis estéticas, científicas e morais de um indivíduo ou de um povo. No meu modesto entender, a dicotomia citada deve ser abandonada. O que há de material (estamos falando de patrimônio cultural) é apenas o suporte do que existe de imaterial. Esse suporte material pode ser perene, temporário ou efêmero – essa deve ser a base para a classificação. Não se fala mais em imaterial, uma vez que todos são, nem em material, uma vez que só o suporte o é. Perene como é o caso do Parthenon, de uma estátua, das Pirâmides, de uma arquitetura que, claro, podem acabar a qualquer momento, mas, a grosso modo, o suporte é perene. Efêmero como, por exemplo, o acarajé, a procissão do Círio de Nazaré. São coisas efêmeras, cuja materialidade é consumida e reeditada. E existe o patrimônio de suporte temporário, que são os patrimônios paisagísticos, substituíveis, que não encontravam lugar anteriormente entre material e imaterial. Quem vier depois de mim deveria ler minha tese para entender qual é o patrimônio do SRBM e embasar-se de conceitos capazes de sua missão. Acredito que, assim, a pessoa tem muita chance de se sair bem, é claro que com o auxílio do Conselho para orientá-la em seu caminho.

F: Para finalizar a entrevista peço que você comente a falta que a inesquecível Janete Costa fará.

R: Bom, a Janete era sensacional, Roberto deve muito a ela. Em tudo que tinha a ver com arquitetura e decoração, ela opinava e Roberto acatava. Era criadora de um estilo: você chega em uma casa e vê que aquilo é Janete.

Era uma pessoa desassombrada, inteligente, ativa, corajosa e, como Roberto, não se atinha a fórmulas. Era uma pessoa de princípios. Ela me deu muita força. Lembro de certa ocasião quando tínhamos que pintar uma parte nova do prédio da administração do Sítio, e não chegávamos na cor, porque era uma tonalidade avermelhada, feita por Roberto na hora, misturando pó xadrez e cal. Fizemos dezenas de tentativas e nada. Finalmente chegamos a um resultado que parecia igual, mas, por via das dúvidas, resolvemos deixar uma linha entre a cor antiga e a nova. Mais tarde, com o sol, acabou ficando diferente e nosso erro, clamoroso. Quando Janete viu o prédio pintado, uma parte vermelha e a outra ocre, adorou e comentou que sempre achara antes aquele prédio muito sisudo e formal. Disse-lhe que tínhamos feito aquilo sem querer e ela retrucou que não importava, que estava muito bom. Assim era ela, digníssima representante da cultura pernambucana, sempre querendo ajudar o Sítio, e assim também seu marido, o Borsoi. Recentemente ele nos enviou depoimento corroborando que o terraço do ateliê deve ser jardim, como Roberto tinha idealizado, mas que na última hora não pode fazer por falta de tempo, tinha que acabar a obra.

Janete era mais uma dessas pessoas amigas de Roberto, insubstituíveis, que vai deixar muita saudade. Nosso Conselho precisa dela, assim como do Luiz Emygdio e dessa gente toda.

Nélson Rodrigues aconselhou a um amigo que perdera o pai há 20 anos e queixava-se de não ter ainda se recuperado: “– Não se recupere nunca”. É o mesmo que devemos usar com relação a Janete e Luiz Emygdio. O Conselho do SRBM não vai se recuperar nunca da perda dessas pessoas.

F: Valeu.

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Depois da fala do Dalmo

Com base nas declarações ouvidas nas reuniões realizadas pelo IPHAN em Salvador e, agora (5-5-09), em Brasília, acho que devo (o fruto parece de vez) falar de uma questão estruturante que não tive oportunidade de expor depois da brilhante fala do Diretor do Departamento de Patrimônio Material (DEPAM), no Centro de Convenções Israel Pinheiro. E nada mais estruturante do que conceitos.
Nestes encontros tem sido bastante mencionado um tal "alargamento do conceito de patrimônio", o que sem dúvida vem ocorrendo, porém, talvez pelo fato de que o Sítio Roberto Burle Marx (SRBM) seja apenas um ponto se comparado às superfícies estaduais do patrimônio gerido pelas Superintendências Regionais do IPHAN, só nos reste o aprofundamento do mesmo conceito.
E faço isso em legítima defesa do SRBM, pois ele e os jardins tombados em geral não encontram lugar na atual dicotomia material/imaterial por mais que o conceito se espraie sem entretanto descer radicalmente aos fundamentos.
O patrimônio que hoje denominamos como imaterial, embora tenha conquistado, por pressão irresistível da realidade, algum espaço no cenário cultural, enfrentando o materialismo exacerbado de nossa era, continua restrito a um gueto que é delimitado/representado pelos objetos cujo suporte material é suficientemente efêmero para passar por inexistente. Porém não há caso em que os dois tipos da classificação vigente (mat./imat.) encontrem-se indissociados. Minha tese é que todo o patrimônio cultural é essencial e prevalentemente imaterial, impalpável, intangível. Para quem tiver interesse, ela pode ser acessada no endereço
http://sitioburlemarx.blogspot.com - link para - Tese de Doutorado - capítulo que trata de patrimônio.
Um ajuste de conceitos é necessário na solução dos problemas paisagísticos e (percebi claramente isto na última reunião) o arqueológico.
Não há patrimônio cultural cuja imaterialidade seja desvinculada de substância e em que tal substância não lhe sirva meramente de suporte. O que hoje classificamos como objeto-de-patrimônio-cultural-material é apenas um bem cultural cujo suporte material é perene ou próximo disso. Nos casos em que esta perenidade falha, ou apresenta defeitos, surge o patrimônio arqueológico.
Disse, e muito bem, o Diretor do DEPAM, Dalmo Vieira Filho, em Salvador: "– Precisamos tombar o que explica o Brasil”. Isto corrobora (se não corrobora, ao menos não desmente) a tese de que o patrimônio a ser conservado é imaterial. E se é a própria explicação do Brasil que precisamos proteger, descobrir, conscientizar, etc. porquê deveria ser diferente com o patrimônio arqueológico? Quão menos coragem seria exigida do Dalmo para colocar os devidos pingos nos is se a questão já estivesse conceituada devidamente? Quão menos esforço intelectual ele teria que empregar se já se considerasse todo patrimônio cultural, inclusive o arqueológico, como essencialmente o significado que interessa à cultura nacional, ou seja, patrimônio imaterial? Não é qualquer caquinho de telha do século XVIII que sustenta informação ou dá testemunho de algo que valha a pena lembrar. O mesmo se dá com relação aos elementos peculiares do paisagismo: não é qualquer planta que encerra representatividade superior ao ônus de mantê-la. Há espaços vazios bem mais significativos do que certas árvores. É o patrimônio intangível que vai fazer a distinção nesses casos e em quaisquer outros relativos a bens culturais. A palavra Arqueologia não é mágica e esta disciplina não tem o poder de sacralizar todo material que encontre se nele não houver imaterialidade (conhecimento, significado) dignificante. Isso se tornou o óbvio, depois da fala do Dalmo, e todos já sabem. A meu ver falta apenas deixar que este saber estruture nossas ferramentas, reestruture o IPHAN.


Não é interessante que exista no Instituto um Departamento de Patrimônio Imaterial por dois motivos: primeiro - todo patrimônio cultural é imaterial; segundo - se existe um departamento com esse nome, que trata de determinados itens, isso implica no erro de supor que os demais objetos do patrimônio cultural sejam 100% matéria, isto é, não possuam imaterialidade agregada. Por outro lado, tampouco é útil haver um Departamento de Patrimônio Material porque todos os objetos culturais, mesmo aqueles cuidados pelo DPI, possuem matéria física, ainda que efêmera e despercebida. O equívoco da classificação é agravado pelo fato de que os objetos culturais cuja materialidade se situe entre o efêmero e o perene – os temporários (toda árvore morre) – ficam no limbo, como o SRBM e os jardins tombados.
Nesta fase de reestruturação, a que fomos chamados a opinar, sinto-me no dever de propor a seguinte divisão para os departamentos do IPHAN, baseada na duração do suporte material dos objetos – forma em que tanto as questões paisagísticas como as arqueológicas encontram, além de um lugar conceitual, soluções mais fáceis e naturais, sem prejuízo das que já estão contempladas na atual estrutura:

1. Departamento do Patrimônio Efêmero - incluindo todos os bens hoje cuidados pelo Departamento de Patrimônio Imaterial do IPHAN (DPI) e os que futuramente seriam. A ênfase dada aqui ao tratamento do suporte material respectivo é basicamente a reedição.
2. Departamento do Patrimônio Temporário - que incluiria os jardins tombados e o SRBM. O tratamento dado aqui ao suporte material é basicamente a substituição.
3. Departamento do Patrimônio Perene - para os objetos cuidados atualmente pelo DEPAM, com uma subdivisão para os objetos do patrimônio de suporte perene vestigial (arqueológico, paleontológico, pré-histórico, histórico). O tratamento dado aqui ao suporte material é basicamente a conservação.

Na última reunião, depois da fala do Dalmo, muitos assinalaram o fato de que ele “pôs o dedo na ferida”. Sim, ele fez isso, mas essas feridas “não vieram de Marte” (como lembrou o Presidente Luiz Fernando de Almeida, na mesma reunião, parafraseando Caetano Veloso). Essas feridas são sintomas. E sintomas de que algo não vai bem no organismo conceitual profundo. A ferida arqueológica foi exposta em Brasília. Falta ainda tomar consciência, para poder tratar, da ferida paisagística.

Reconheço que há tarefas urgentes em marcha, que as estruturas criticadas são extremamente sólidas e que talvez as mudanças propostas sejam vistas como intempestivas, mas se este não é o momento de apresentá-las, qual seria?

quarta-feira, 11 de março de 2009

Uma qualidade fundamental em Roberto Burle Marx

4/8/2000
O escritor, historiador, político ativo e teórico, membro da Academia Francesa, senador, oito vezes ministro, Alain Peyrefitte, em sua obra “A Sociedade de Confiança”, afirma que existe forte correlação entre a prosperidade de um povo e o grau de confiança que permeia seus indivíduos.
Com efeito, nada se faz em sociedade sem ter por base esta espécie de fé no semelhante. Quanto esforço, formalidade e burocracia são poupados, e quantas perspectivas novas se abrem, quando existe confiança!
Creio que Roberto Burle Marx, sua obra e colaboradores são um exemplo que corrobora essa tese.
Sem falar em qualidade, é impressionante a quantidade de coisas, materiais e imateriais, que Roberto deixou: jardins, plantas, pinturas, lutas, projetos, painéis, ensinamentos, tapeçarias, conferências, esculturas, desenhos, frases, etc. Entretanto, no meio disso tudo, ele nunca perdeu oportunidade de repetir que sua maior riqueza eram os amigos:”— Se eu não sei fazer ou não conheço uma coisa, um amigo meu sabe.”
E Roberto Burle Marx confiava plenamente nas pessoas. Dentre suas esplêndidas qualidades, esta, ao meu ver, é a que mais o distinguia, embora outras, como a generosidade, o talento múltiplo, a honestidade intelectual e o espírito, fossem bem mais conspícuas. Penso que, talvez, ele só tenha conseguido criar o Sítio e, por extensão, sua obra paisagística por causa da grande confiança que depositava nos amigos e, por extensão, no ser humano. Cabe repetir um exemplo eloqüente, que possibilitou a perpetuação de sua mais importante obra: quando José Tabacow e eu propusemos doar seu sítio à Fundação Pró Memória, ele disse apenas: “— Façam como acharem melhor”. E estou certo de que cada um, qualquer um, dos que trabalharam com ele pode lembrar de uma história de confiança equivalente.
Seus inúmeros colaboradores, emocionalmente tocados pelo incomum teor de confiança recebido, sentiam-se agraciados com algo muito valioso e procuravam retribuir, geralmente, com o melhor deles próprios. Desencadeavam-se, então, colaborações intensas que Roberto dirigia, orientava, tecia, orquestrava, sem se colocar em plano superior. Alguém, cujo nome não lembro, disse que Shakespeare se parecia com todos os homens, menos pelo fato de se parecer com todos os homens. Pois Roberto demonstrava estar no mesmo nível de seus parceiros, menos pelo fato de se colocar no nível de cada um.
Foi esta qualidade, formidável (como o “óbvio ululante” de Nelson Rodrigues) e, por isto mesmo, (pelo menos, até agora, para mim) invisível, que moveu os ânimos de quantos se acercaram do mestre, estabeleceu um ambiente de trabalho fascinante e tornou possível tantas realizações belas, importantes e fundamentais.
Não é demais relembrar, por ocasião do aniversário de sua morte, que a confiança no próximo, essa capacidade de pular no escuro, esse desprendimento, essa coragem, essa fé, era, também e muito, o nosso Roberto Burle Marx.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

Homenagem a Luiz Emygdio no Conselho Estadual de Cultura do Rio de Janeiro

26/06/2002

É para mim uma honra muito grande ter sido convidado para falar na seção solene desta casa em homenagem a tão ilustre amigo, seu presidente.
Não sei se estou à altura da empreitada, mas gostaria de lembrar três episódios que ilustram a personalidade do professor Luiz Emygdio, certo de que todos terão histórias equivalentes, pois sua vida foi pródiga em passagens marcantes que evidenciavam seus grandes caráter, sabedoria e inteligência.

Numa das muitas excursões de Roberto Burle Marx para estudo e coleta de plantas em ecossistemas brasileiros intocados de que participou, sempre distribuindo o saber com brilho e generosidade, deparou-se num determinado ponto com plantas que para ele eram interessantíssimas pelo ineditismo, talvez, mas que não tinham tanta significação em termos paisagísticos. Roberto, como de costume, não tinha tempo a perder com aquele “capinzal de quinta ordem” e instava todos a prosseguirem na expedição, mas Luiz Emygdio o conteve:
“— Calma Roberto, que eu agora estou em pleno êxtase botânico.”
Freqüentemente citei esta passagem para meus alunos, pois demonstra que o conhecimento ilumina, a cultura entusiasma e o amor pelos dois transforma em palco de beleza mesmo cenários aparentemente desinteressantes para quem passa sem se aprofundar.

A companhia do professor sempre foi intensamente valiosa e agradável. Seus comentários não eram simplesmente técnicos ou acadêmicos. Ele sabia despertar o interesse com aspectos curiosos de cada planta para nós, o comum dos mortais.

Sua participação desde o primeiro instante no Conselho do Sítio Roberto Burle Marx foi de valor inexcedível. Enriqueceu-o com indicações de novos conselheiros, altamente qualificados, como o doutor Ubiratan Corrêa e o professor Ernani Diaz.

Com seu espírito desassombrado, era um grande aliado naquilo que eu chamo de luta pelo esclarecimento do que é conservar um jardim tombado — assunto larga e teimosamente incompreendido pelos idólatras, em geral histéricos, da paisagem congelada.

Numa dessas reuniões, diante da peroração preciosista, pedante e burocrática de uma participante, defensora da idéia equivocada de preservação do Sítio como se inanimada obra de arquitetura fosse, sussurrou-me demonstrando sua fleugma e bom humor:
“— Bizâncio tinha que cair.”

Outra atitude, a meu ver emblemática, foi o ensinamento a um dos jardineiros que estava preocupado contando os minutos que faltavam para a própria aposentadoria:
“— Não queira se aposentar, isto é um perigo. Eu nunca quis isso para mim.”

Tenho pena de que ele não tenha visto pronto o caminho já quase por abrir à visitação que passa no Sítio Roberto Burle Marx pela coleção de uma de suas famílias favoritas — as Helicônias.

A única planta que Roberto Burle Marx classificou foi a Heliconia emygdiana e a escolha desse nome revela o apreço de nosso saudoso mestre a este outro saudoso mestre. Certamente estarão trocando considerações sobre a botânica celestial nos jardins do paraíso.

O teatrólogo Nelson Rodrigues disse a um amigo que, passados 20 anos da morte do pai, confessava não ter ainda se recuperado:
“— Não se recupere nunca.”
Acredito que a mesma sugestão terá que ser seguida pelo Conselho do Sítio Roberto Burle Marx.