domingo, 8 de fevereiro de 2009

Resposta ao Parecer do arquiteto Carlos Fernando Delphim sobre Normas para Intervenções nos Jardins Tropicais do Sítio Burle Marx

11/12/2002

Em primeiro lugar gostaria de informar que, no tempo em que estou na direção do SRBM/IPHAN, raramente uma cópia de parecer sobre o Sítio foi mandada simultaneamente para cá. Quase sempre as obtive praticamente de “contrabando”, depois que já haviam circulado muito tempo em instâncias para mim desconhecidas. Tampouco sei quantos ainda me faltam. Com certeza não tenho o resultante da inspeção feita pelo arquiteto Carlos Delphim no Sítio, em 1999. Apenas, pelo Memorando 283/99/Gab/DEPROT da então diretora Márcia Sant’Anna, fui informado laconicamente que, como resultado daquela inspeção: “...as intervenções de manejo efetuadas no Sítio Roberto Burle Marx foram consideradas corretas”. O parecer atual, datado de 24/10/2002 é o primeiro que recebo em tempo hábil (em 3/12/2002).
Considero essa freqüente exclusão de informações pouco produtiva. Afinal todos estamos preocupados com a preservação, ainda que tenhamos conceitos diferentes e até, talvez, opostos. Embora com riscos de ferir suscetibilidades, a transparência e o franco trânsito das idéias são a forma de contribuir para que mais rápido cheguemos a um consenso, ou pelo menos a um acordo, ou, na pior das hipóteses, a uma definição impositiva.
No caso presente, devo dizer que discordo do parecer em muitos pontos. Para minha surpresa, o autor incorre nos equívocos mais corriqueiros, que apontei de forma geral no artigo “O Tombamento do Sítio Roberto Burle Marx”, elaborado logo após a sessão do Conselho do IPHAN comemorativa do centenário de Gustavo Capanema, em 10/8/2000. Nesta sessão histórica, dentre outras medidas, ficou estabelecido o tombamento do SRBM e que dever-se-ia iniciar uma discussão para definir os procedimentos compatíveis com tão importante ato. Foi precisamente para dar início a esta discussão que escrevi o artigo e o enviei ao Dr. Carlos Heck, presidente do IPHAN, a três de seus conselheiros que protagonizaram o debate naquela sessão, ao DEPROT, à PROJUR e aos conselheiros do Sítio. Não sei se o arquiteto Carlos Delphim o leu, pois disso não deu mostras em seu parecer.
Mas vamos aos pontos de discordância:
1. O Parecer Delphim trata a totalidade das áreas do Sítio como obra de arte de Roberto Burle Marx e, em conseqüência, como um jardim histórico. Essa interpretação não corresponde à realidade, nem é conveniente.
a) Não corresponde à realidade porque há, no Sítio, áreas remanescentes de depósitos de materiais diversos, invasões de plantio de bananeiras, áreas de mata nativa secundária, viveiros de mudas abandonados, etc. e áreas que RBM nunca conheceu, pisou, nem incluiu em planos ou experiências paisagísticas. Estas áreas não podem ser consideradas obra de arte nem jardim, quanto mais histórico. Esse engano, incrustado na base conceitual do Parecer Delphim, contamina suas analogias, eivando-as de inadequação. Por exemplo, na página 8 ele diz: “Os jardins não diferem de nenhum outro bem cultural no que se refere às condições de intervenção. Alguém mandaria mudar uma pintura de Burle-Marx (sic) sob alegação de que ele nunca teria usado uma certa forma ou um certo tom de azul?”. A analogia é imprópria, pois Roberto sempre defendeu que as plantas devem ser plantadas em ambientes compatíveis com sua natureza. Por esta razão, se encontrarmos uma cactácea da caatinga, plantada num canteiro aquático poderemos com certeza afirmar que RBM não faria isso (a não ser que desconhecesse a procedência da planta. Mesmo assim, ao vê-la definhar, rapidamente a tiraria dali). Insistindo no erro, na página 6 o Parecer Delphim sustenta que — “Esses jardins (do Sítio) eram produzidos ao longo do tempo, tendo apenas a criatividade e vontade criadora do autor por orientação.” — e esquece-se das lições ditadas pelo meio ambiente, do respeito aos ecossistemas e às associações naturais, que, despertado pelo botânico Mello Barreto, Roberto procurava seguir e ensinar a seguir.
b) Não é conveniente porque a missão do SRBM é ser um centro de estudos de paisagismo, botânica e conservação da natureza, nessa ordem, segundo seu próprio criador. Roberto doou o Sítio para isto e não para ser transformado num templo de culto ao lado artístico de sua personalidade. Pelo aspecto didático, imposto por respeito à vontade de RBM, deduzimos como necessidade fundamental a atualização. Isso não quer dizer que se vai tocar sem motivo nas áreas que podem ser consideradas como jardim histórico ou obra de arte, mas nas outras, coleções podem e devem ser ampliadas e toda vez que o aspecto didático ou estético de alguma feição do Sítio for prejudicada, deveremos intervir. Por exemplo: uma planta rara, talvez já extinta em seu habitat natural devastado, da qual contávamos com apenas um espécime na coleção, mas que porventura conseguimos multiplicar, deverá ser plantada também em outra área do Sítio para aumentar as probabilidades de sucesso em sua preservação, para testar sua adaptabilidade a outro ambiente, para demonstrar sua aptidão de uso em paisagismo e, enfim, para desafogar os sombrais. O SRBM além de obra de arte é também um laboratório ao ar livre onde se preserva um fazer iniciado por Roberto e que não deve ser estancado sob pena de perda cultural irreparável e amputação da principal função da coleção de plantas. Seria como se o Instituto Oswaldo Cruz, ao ser tombado, tivesse também suas culturas microbianas, coleções científicas, fabricação de vacinas e experiências congeladas. Esse aspecto-função do SRBM, pioneiro no Brasil, nunca é lembrado ou mencionado por quantos até hoje se propuseram a estabelecer suas normas de manutenção. E, no entanto, existem ainda na coleção, acondicionadas em latas provisórias, inúmeras mudas, verdadeiros tesouros vegetais deixados por RBM, à espera do tempo certo para serem plantadas. Algumas destas mudas encontramos sem qualquer indicação de origem, com identificação dificultada pelo fato de serem árvores ou palmeiras ainda muito jovens. Recentemente foram identificadas cinco mudas de “Ubussú”, Manicaria saccifera, uma palmeira amazônica cujas folhas chegam a até oito metros de comprimento. Os sombrais abrigam também, agora com 30cm, quatorze Ceroxylon qüindiuensis, que é a mais alta de todas as palmeiras, planta nacional da Colômbia e que atinge 70 metros. Deverão futuramente ser plantadas no Sítio ou respeitaremos apenas o aspecto-jardim-histórico dele? Creio que a resposta é óbvia.
2. O Parecer Delphim desconsidera a inexcedível diferença que existe entre o inanimado e o vivente ao pretender transpor literalmente conceitos e práticas de preservação de patrimônios arquitetônicos e artísticos para o patrimônio paisagístico, botânico e natural. De fato ele afirma na página 8 que “Os jardins não diferem de nenhum outro bem cultural no que se refere às condições de manutenção”. Por assim considerar, infere que a burocracia empregada para controlar mudanças num tipo de patrimônio pode surtir efeito noutro, e defende seu emprego irrestrito quando, na verdade, ela pode liqüidá-lo. Quando comecei, em 1995, a dirigir o SRBM, inúmeras plantas invasoras estavam a ocupar os espaços, bloqueando as vistas, e transformando num impenetrável matagal o que deveria ser “a natureza ordenada pelo homem e para o homem”, como dizia Roberto. Isso se deveu ao fato de que ele, homem de múltiplas atividades nacionais e internacionais, além de problemas sérios de visão, enfrentou meses de enfermidade em que não pode dar atenção ao Sítio. Esse longo tempo foi seguido de um ano e meio da gestão do Dr. José Tabacow que, residente em Santa Tereza do Espírito Santo, assumiu a direção com o compromisso precípuo de ordenar institucionalmente a casa abalada com o desaparecimento do mestre. Cumprida esta difícil missão, só podendo dispor de dois dias, entre viagens, por semana em média, José pediu afastamento, mas somando os dois períodos, o Sítio foi inevitavelmente superlotado por nativas oportunistas, das quais algumas já haviam atingido porte arbóreo. Isso sem contar os remanescentes de viveiros cujas mudas perfuraram seus recipientes e cresceram, adensando-se de forma desmesurada. A suposição da necessidade de consultas formais com abertura de processos para realizar intervenções que se impunham rotineiras, aliado ao medo de tocar em seres vivos que erroneamente alguns pensavam terem sido plantado “pelas próprias mãos de Roberto” só fortaleceram a inércia e, conseqüentemente, a tendência caótica natural. Para recuperar a ordem e restabelecer as perspectivas insubstituíveis dos jardins, uma vigorosa atividade de nosso exíguo corpo de jardineiros foi, então, absolutamente necessária e ainda o é em alguns pontos, além dos que, incessantemente, são invadidos por vegetação espontânea. Tal recuperação é totalmente incompatível com a morosa burocracia, peculiar aos processos que envolvem tipos estáticos e abióticos de patrimônio.
3. O Parecer Delphim é contraditório em seus próprios termos:
a) ao afirmar na página 7 que “...muitos profissionais tendem a substituir os rigorosos critérios de intervenção...” e, na página 1, que “...a definição de normas para (intervenções em) jardins tropicais é tarefa pioneira, sem literatura para consulta, sem modelos para orientação.” Ora, como podem existir critérios rigorosos que ao mesmo tempo são inéditos, nebulosos ou experimentais?
b) ao afirmar na página 8 que — “Têm-se que descartar qualquer simulação de intimidade com um espírito criador sob pretexto de intervir em sua obra.” — enquanto na página 7 supõe que — “O extremo dinamismo da obra de Burle-Marx corresponde à inquietude de seu espírito. O gênio é imprevisível... o gênio nunca sabe com precisão e clareza o que pretende ao iniciar o ato de criação. Nada tem em mente pois o que determina sua ação parte de fonte do inconsciente. Faz apenas o que impulsos profundos determinam...”.— Além da contradição entre estas frases (muita intimidade, de fato, seria necessária para se saber com essa precisão o que se passa na mente do gênio), se é que RBM agia assim, ele reservou essa forma proceder para algumas de suas pinturas, desenhos ou esculturas. Considero entretanto inaceitáveis generalizações do tipo “nada tem em mente” ou “o gênio nunca sabe com precisão e clareza o que pretende”. Muitas vezes Roberto via algo – uma estrutura de sustentação de outdoors ou o sistema radicular aéreo de uma planta, por exemplo, e dizia “— Quero fazer um desenho com estes ritmos etc. etc.”. Neste caso, o processo era invertido: algo do mundo material, mesmo estranho à arte da composição, sugeria uma possibilidade de expressão artística, um resultado a ser perseguido, que poderia materializar-se num desenho, escultura, pintura, ou painel. Entretanto, no caso específico de paisagismo, esse não era definitivamente seu modus operandi. Roberto propalava o respeito às leis da natureza e às funções específicas que cada programa demanda tendo em vista as necessidades, conforto e comportamentos dos usuários do jardim ou parque por ele criado. Nos projetos paisagísticos RBM fazia questão de explicar o porquê de cada equipamento, material ou tipo de vegetação utilizado. Tudo isso de forma o mais consciente possível e se alguém de sua equipe argumentava, com lógica mais acurada em determinado item, sugerindo solução diferente, ele a acatava, valorizando a observação do colaborador. E não digo isto “sob pretexto de” ou como motivo para intervir em sua obra, pois já os tenho como obrigação por me encontrar momentaneamente na posição de diretor do Sítio, mas apenas a bem da verdade e para fazer justiça, tanto a seus inúmeros colaboradores, quanto às virtudes de desprendimento nos atos da criação, prática democrática nos trabalhos em equipe e honestidade intelectual de Roberto Burle Marx.
c) Ao afirmar na página 2 que — “Sob um ponto de vista técnico, em um órgão com um quadro de recursos humanos tão reduzido quanto é o IPHAN, pode-se considerar que, de uma forma geral e não aprofundada somos todos especialistas em preservação do patrimônio cultural.” Aí está um paradoxo. Visto que os especialistas são justamente aqueles que se aprofundam, não faz sentido sustentar que de forma não aprofundada somos especialistas. Mais errado ainda é usar este absurdo como desculpa e para qualificar pessoas (no caso, a bibliotecária Zulmira Pope) que, desconhecendo o assunto específico em questão, se arvoram a fazer denúncias técnicas — prática que é, e sempre será, injusta para com um colega e contraproducente para qualquer instituição. E admitir tal prática significa condenar todo o histórico esforço do IPHAN, ao longo de sua existência, de constituir e consolidar quadros técnicos competentes em suas especialidades.
4. O Parecer Delphim está desinformado quanto a:
a) Durante minha gestão, excetuando as que morreram ou estavam irremediavelmente comprometidas por alguma praga ou doença, árvore alguma do Sitio, foi retirada de áreas que pudessem ser classificadas como obra de paisagismo de RBM ou jardim histórico e, mais, árvore alguma pertencente ao acervo natural, botânico ou paisagístico foi derrubada em qualquer parte do Sítio. Os espécimens erradicados eram invasores, clandestinos, indesejáveis e não plantados ou apropriados por RBM, sendo além disso, prejudiciais a espécimes importantes do acervo ou a algum aspecto didático do Sítio.
b) Na página 2 há uma inversão. Não fui eu que não quem — “... não deu ouvidos aos argumentos em defesa da vegetação”. — da Sra. Zulmira Pope, mas sim, foi ela que, não quis ouvir os esclarecimentos quanto à forma de tratamento do acervo natural botânico e paisagístico adotada no SRBM. Se alguém ainda puder considerar que os argumentos dela eram “em defesa da vegetação”, não o eram, absolutamente, em defesa dos jardins do Sítio, ou mesmo da vegetação que autenticamente pertence ao Sítio. Ela também recusou-se a considerar explicações técnicas do conselheiro José Tabacow, então presidente do Conselho, paisagista e ex-sócio de Roberto Burle Marx, que lhe respondeu a uma carta-denúncia justificando tecnicamente todos os atos de manutenção da coleção botânica e dos jardins. A bibliotecária Zulmira Pope, ainda, me ameaçou brandindo a lei ambiental que não se aplica a coleções botânicas, pois proíbe a retirada de plantas nativas, mesmo em formação. Considerando que quase todas as plantas pioneiras e invasoras são nativas, se isso tivesse sido acatado, em lugar de jardim histórico, teríamos uma selva no SRBM hoje. E ela não foi transferida imediatamente. Permaneceu no Sítio ainda mais de um ano, sendo finalmente transferida, também por outros motivos, expostos no Memorando 070/2000/SRBM/IPHAN, aceito sem qualquer contestação por mais altas instâncias do IPHAN.
c) Na página 26 há uma afirmação desatualizada: Embora contrário a planos de manejo para áreas dotadas de Conselhos, e por outras razões expostas em artigo publicado na “Folha”, periódico editado pela Sociedade dos Amigos de Roberto Burle Marx elaborei posteriormente, a pedido da então diretora do DEPROT, Sra. Louise Ritzel, as Diretrizes (nome que considero mais apropriado do que Plano de Manejo) para o Tratamento do Acervo Natural Botânico e Paisagístico do SRBM, em novembro de 2000. Estas Diretrizes constam do artigo “O Tombamento do SRBM” já mencionado. São regras gerais que contornam os problemas de delimitar o indelimitável, enumerar o inumerável, e que não pretendem abarcar e normatizar o universo das decisões possíveis, mas incluem, consideram, aproveitam e apóiam os sujeitos dessas decisões, especificando suas competências. Elas dotam o SRBM de instrumento controlador que permite o trabalho dos diretores sem sobrecarregá-los com burocracias engessadoras e induz o Conselho do SRBM a fiscalizar o Sítio, ao mesmo tempo em que lhe reafirma a capacidade de substituir qualquer diretor no momento em que este não mais atender à sua expectativa, equilibrando assim os poderes de decisão, sem tornar difusa a responsabilidade pela manutenção do inestimável acervo legado por RBM.
5. O Parecer Delphim é impreciso quando determina, na página 10, que: —“Naturalmente, as atividades rotineiras de manutenção dispensam a consulta à superintendência regional, porém ações extraordinárias e drásticas como derrubada de vegetação não podem ser executadas sem consulta ao IPHAN.” O problema, nesse aspecto, envolve exatamente a delimitação do indelimitável, entre o que vai ser considerado atividade rotineira e o que não vai. Que porte de um vegetal será considerado o limite? Quão doente tem que estar uma árvore para poder ser cortada sem a formalização de procedimentos administrativos que envolvam unidades diferentes do IPHAN? Alguém tem que ser encarregado de decidir isso. Tenho consultado o DEPROT e a 6ªSR toda vez em que proponho algum plano maior, como a Reestruturação dos Sombrais, o Parque Roberto Burle Marx ou a Ampliação da Capacidade Hídrica do Sítio. São planos para médio e longo prazo, mas nas matérias urgentes e imediatas, em que, além disso, os maiores especialistas somos nós, consultar pessoas alheias ao assunto torna-se dolorosamente ilógico.
6. O Parecer Delphim reserva para si próprio, ao mesmo tempo em que nega ao presente e futuros diretores do Sítio Roberto Burle Marx/IPHAN, a capacidade ou possibilidade de “ser IPHAN”, ou pelo menos de “estar IPHAN”. Na página 9 sustenta que: — “... a preservação do patrimônio é prerrogativa exclusiva do IPHAN.” — Se a interpretação vigente da lei é a de que as Superintendências Regionais são os órgãos responsáveis pelo patrimônio também dentro das Unidades Especiais, então que diferença há entre o patrimônio das Unidades e o resto do patrimônio que está disperso pela Região? Existe um diretor, em cada uma dessas Unidades, que representa o IPHAN pela decisão de seu presidente, e que, sem dúvida, é o maior conhecedor do patrimônio que está sob sua administração. Não é interessante para o IPHAN um pleonasmo autoritário pesando sobre cada Museu. A mesma lei, que atribui o poder de controle das intervenções no patrimônio às SRs, não as impede de delegar internamente esse poder aos diretores das Unidades, o que seria mais inteligente e mais coerente. Se encontrarmos no Sítio uma Johannesteijsmannia altifrons sendo fisicamente prejudicada pela proximidade de uma Guarea trichilioides e quisermos aprovação dos técnicos da 6ª SR para solucionar o problema, primeiro teremos que explicar o que são tão estranhos elementos e, em seguida, porque um deles é, no contexto, mais importante que o outro e porque o sacrifício deste outro (o que quase nunca é aceito por leigos) é ecológica e ambientalmente irrelevante. Então, depois de enviar um memorando acompanhado de exaustivas fotografias e aguardar a visita do técnico (que antes terá que solicitar uma viatura com gasolina para uma viagem de 140km), torcer para que ele concorde com a solução que nossos técnicos já encontraram semanas ou meses antes. Em se tratando de patrimônio arquitetônico ou artístico, essas ocorrências são raras e justificar-se-ia o dispendioso procedimento. Já no nosso caso, no que toca ao acervo natural, botânico e paisagístico, raras são as semanas em que não temos que solucionar questões semelhantes. A burocracia tornar-se-ia insustentável, além de impraticável. Não é muito melhor confiar nos diretores das Unidades Especiais e aceitar o fato que eles provavelmente vão encontrar soluções melhores com seus Conselhos e seus técnicos do que com outros já regionalmente sobrecarregados? Não é muito melhor admitir que os diretores (principalmente sabendo que eles vão ter que pagar por algo de errado que fizerem sozinhos) são capazes de decidir em que casos devem procurar as SRs para com elas repartir responsabilidade pelas decisões? Por todos esses motivos, proponho parar com a disputa pela demarcação territorial de poder dentro das Unidades Especiais e Museus do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
7. o Parecer Delphim atual desdiz, com prudente ambigüidade, o Laudo de Vistoria Delphim de 1999 (baseado no que me foi informado no Memorando 283/99/Gab/DEPROT da então diretora Márcia Sant’Anna). Como resultado daquela inspeção, apurou-se que: “...as intervenções de manejo efetuadas no Sítio Roberto Burle Marx foram consideradas corretas”. Espanta-me que, três anos depois, o autor possa ter flexibilizado tanto a própria opinião, só por informações de terceiros, sem realizar pessoalmente uma única visita nesse ínterim. Aliás, a maioria das pessoas que se intitulam “preocupadas com o SRBM” o faz por informações de terceiros que, por sua vez, ouviram falar.... Não era de se esperar que o técnico encarregado do IPHAN para a área, embarcasse também nessa “opinião de orelhada”. Salvaguarda-se ele ao dizer que elaborou o Laudo de Vistoria em 1999 apenas “a julgar pelo que me fora mostrado pelo Sr. Robério Dias”. Não seria o caso de fazer então uma vistoria “completa” por conta própria antes de incluir no parecer atual frases como: “Administrar o Sítio Burle-Marx não é exercer os conhecimentos de criar jardins” (como se eu estivesse fazendo isto) ou “Parece que a Direção do Sítio Burle-Marx preferiu dar ouvidos ao Conselho do Sítio. Este deve ser consultado no que é de sua competência contudo a preservação do patrimônio é prerrogativa do IPHAN”. Há muita confusão neste trecho. Esclareço: O Conselho foi instituído por Roberto Burle Marx com alguns dos maiores botânicos e paisagistas brasileiros, que além disso eram especialistas em Sítio Roberto Burle Marx, e pessoas eminentes da área da cultura, dentre as quais, como membro nato, o próprio presidente do IPHAN, para auxiliar o Diretor (que, por sua vez, tem que ser ou estar IPHAN), em qualquer das dificuldades da direção. Se uma das dificuldades do diretor for algum aspecto do tratamento do acervo, então isso, automaticamente, será da competência do Conselho. Não entendo a preferência pela exclusão (em lugar de uma entusiástica inclusão) do Conselho do SRBM da engrenagem da preservação do patrimônio. Com base em quê (excetuando-se uma estreita interpretação da lei) pode o Parecer Delphim acreditar que um plano de manejo elaborado por técnicos da 6ªSR “... assegura, até à própria direção, segurança no cumprimento de suas atribuições ”, melhor do que as Diretrizes elaboradas pelo Conselho do Sítio ou melhor do que sua simples aprovação das medidas de tratamento do acervo?
8. O Parecer Delphim tem uma lógica incompreensível ao apresentar, na página 12, como razão para que o Manual de Intervenções em Jardins Históricos, de sua própria autoria, seja indispensavelmente “tomado como referência básica e orientação para as intervenções a serem doravante executadas no Sítio Burle-Marx”, o fato de “... que é o único documento sobre o assunto existente no Brasil e um dos poucos do mundo”. Tal fato pode ser curioso e até elogiável pelo pioneirismo, mas nunca garantia de adequação ao caso do SRBM que requer conhecimento específico e clareza na compreensão de sua natureza, missão e funções. Pelo resumo do mesmo, apresentado ao final do Parecer Delphim, parece-me uma colagem de obviedades e de medidas utópicas que, entretanto, desconsidera a realidade dos fatos relativos ao SRBM e a responsabilidade de sua proteção efetiva. O SRBM, uma das maiores e mais importantes coleções de plantas tropicais no mundo, tem 365.000 m² e 18 jardineiros. Isso significa que cada jardineiro deve cuidar de 20.000 m². É verdade que nem todas as áreas recebem tais cuidados, mas considerando que os funcionários públicos no Brasil trabalham em média 200 dias por ano, a proporção se mantém, equivalendo a cerca de 2,5 campos de futebol oficiais para cada homem, isso em terreno acidentado que começa na cota 5 e termina a 400 m de altitude. Sua equipe técnica é constituída de um paisagista (eu), um biólogo, um advogado que antes era agente de segurança, e um estudante de geografia. Não temos em nosso quadro ao menos um fitopatologista. Essa carência é suprida intermitentemente, por um profissional mantido ora pela Sociedade de Amigos, ora pelo MinC, ora pela boa vontade do próprio fitopatologista, como é o caso no momento. Não pretendo estender o rol das deficiências, pois todos as temos, mas acho que já deu para entender que as cornucópias de levantamentos exaustivos e minuciosos, tanto fotográficos como orais, iconográficos, arquivológicos e bibliográficos, além da identificação e localização de uma infinidade de indivíduos vegetais em constante multiplicação, não podem ser pré-requisitos para o tratamento do acervo. O Manual de Intervenções propõe ainda uma série de projetos como o paisagístico (???) e o de drenagem dentre outros, inúteis, uns e evidentes, outros, cujas prioridades e circunstâncias em vista dos recursos disponíveis, no caso específico do Sítio, o tal Manual não pode definir. Mais adiante sentencia: “Devem-se adotar medidas para a consolidação e proteção de esculturas e outros elementos ornamentais dos jardins contra diversos fatores adversos”. Se é preciso escrever isso, será, por isonomia, necessário relacionar todas as ações que poderão ocorrer num jardim, e tal tarefa, feita com coerência, resultaria num documento, humanamente impossível de ser completado, mas que, de tão extenso, tornar-se-ia inútil na prática. O Manual passa, sem meio termo, de considerações sobre máquinas de cortar grama à produção de mudas por sementes, enveredando pela coleta de lixo numa listagem que tanto é insatisfatória para um bom livreto sobre cada item, como prolixa demais para ter utilidade como documento institucional. A técnica de jardinagem é dominada pelo SRBM, que, de vez em quando a exporta, através de convênios, para escolas técnicas e freqüentemente recebemos operários para estágio nessa área. Não necessitamos de relações incompletas, ainda que extensas, do que pode ou deve ser feito, pois o que serve para uma planta pode ser danoso para outra que só o SRBM, por enquanto, cultiva. Mais interessante seria poder refazer as assinaturas de periódicos técnicos e científicos de Botânica e Horticultura que acompanham, em constante evolução, os cuidados relativos a cada família, gênero ou espécie.
9. Recentemente li uma entrevista muito interessante, dada pelo arquiteto Carlos Delphim ao Jornal da Paisagem, em que cita o duque de Hautcourt e um aspecto bastante desconsiderado na preservação de jardins em geral. Diz o duque, citado e endossado por Delphim: “— O espaço vazio é talvez o elemento mais importante dos jardins e dos parques.” Isso é uma grande verdade, pois sem espaços vazios não pode haver atividade nem, ao menos, visibilidade nas áreas paisagísticas que pretendemos preservar. Roberto Burle Marx dizia algo semelhante e fazia analogia com os jardins, citando um compositor americano (cujo nome me escapa no momento): “ — A música não é composta apenas de notas, mas também do silêncio entre elas.” Com efeito, quando se tomba um jardim, de certa forma, talvez inconsciente, tomba-se também o vazio que o compõe. Acostumadas a preservar o que é sólido e palpável, muitas pessoas se preocupam só com a perda dos elementos materiais. Não se dão conta que, num jardim, a preservação exclusiva dessa classe de entidades pode por a perder todo o conjunto. Lamento que em seu extenso parecer o arquiteto Carlos Delphim não tenha encontrado espaço para incluir tão importante e esquecido princípio e reconhecer o paralelismo que existe entre ele e algumas das medidas que sou forçado a tomar em defesa do patrimônio que está sob minha responsabilidade.

Tais são minhas objeções principais ao Parecer Delphim. Que me perdoe seu autor, fazer tantos reparos, tanto no que disse, como no que deixou de dizer, mas espero que tenha em mente que tratam-se de incorreções em relação ao meu ponto de vista técnico e de que não podemos negligenciar com a manutenção do SRBM cedendo a estereótipos simpáticos ao grande público, porém prejudiciais ao legado de nosso saudoso mestre. Permaneço aberto ao diálogo e disposto a debater e a rever cada posição diante de argumentação procedente, baseada na lógica e nos fatos.
Atenciosamente,
Robério Dias
Diretor

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