1. Introdução: A Urgência de um Novo Paradigma
A atual classificação do patrimônio cultural brasileiro,
fundamentada na dicotomia entre 'material' e 'imaterial', representa mais do
que uma mera imprecisão acadêmica: é uma falha conceitual que há décadas gera
graves e intoleráveis consequências práticas. Este modelo binário, ao distorcer
a natureza intrínseca dos bens culturais, gera conflitos de gestão, desperdício
de recursos e, em última análise, compromete a preservação de acervos
complexos, como jardins históricos e sítios arqueológicos. O presente manifesto
apresenta e defende uma reformulação radical, um novo paradigma que substitui a
falsa oposição por uma lógica coesa, funcional e capaz de abranger toda a
diversidade do patrimônio cultural.
Nossa proposta se apoia em três premissas fundamentais que
reorientam o campo da preservação:
- Todo
patrimônio cultural é essencial e prevalentemente imaterial, pois
seu valor reside nos significados, saberes e memórias que ele corporifica.
- Não
existe patrimônio cultural sem um suporte material que o torne
perceptível aos nossos sentidos, seja ele uma edificação de pedra, um
alimento ou uma celebração.
- A durabilidade
desse suporte material deve ser o critério fundamental para a
classificação dos bens e, consequentemente, para a definição das
estratégias de preservação.
Para justificar a urgência desta mudança, é imperativo
primeiro dissecar as falhas lógicas e as consequências disfuncionais do modelo
que hoje aprisiona o pensamento e a prática da preservação no Brasil.
2. A Crise do Modelo Vigente: Análise Crítica da
Dicotomia Material vs. Imaterial
Compreender as origens do modelo atual é o primeiro passo
para superar suas limitações. A criação da categoria "Patrimônio
Imaterial", embora bem-intencionada, gerou um efeito colateral imprevisto.
Concebida para proteger saberes e fazeres — como festas, tradições orais e
ofícios —, ela inadvertidamente forjou uma falsa oposição que obscurece a
verdadeira natureza de todos os bens culturais. Esta crise teórica não é
um exercício abstrato; ela nasceu de conflitos práticos e da urgência de
dirimir controvérsias na gestão do Sítio Roberto Burle Marx (SRBM), cujo acervo
paisagístico expôs a total inadequação do sistema vigente.
A gênese do problema reside na "força exclusiva do
poder das palavras". Ao se cunhar o termo "imaterial" para um
conjunto específico de bens, tudo aquilo que não se encaixava na nova categoria
foi forçado, por exclusão lógica, a ser classificado como "material".
O resultado é uma taxonomia assistemática e incoerente, que impede o
desenvolvimento de estratégias de gestão adequadas.
Para ilustrar o absurdo lógico desta classificação, duas
analogias são particularmente eloquentes:
- A
Enciclopédia Chinesa de Borges: A bizarra classificação de animais
descrita por Jorge Luís Borges em sua enciclopédia fictícia, o
"Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos" — que divide os
animais em categorias como "a) pertencentes ao imperador, b)
empalhados, c) amestrados" etc. —, espelha a lista assistemática
apresentada por documentos oficiais do IPHAN, que enumeram o patrimônio em
"a) Patrimônio material, b) Patrimônio imaterial, c) Patrimônio
natural e d) Sítios arqueológicos". É de se inferir que os dois
últimos não se incluam nos dois primeiros, o que nos leva ao disparate de
supor que o patrimônio natural e os sítios arqueológicos não são nem
materiais, nem imateriais.
- A
Ilha dos Animais Irracionais: A criação de categorias pode gerar
efeitos semânticos não intencionais. Se zoólogos, ao descobrir uma nova
ilha, denominassem sua fauna como "animais irracionais", seríamos
forçados pela lógica a classificar todos os outros animais — cães,
lagartos, tuiuiús — como "racionais". Da mesma forma, ao nomear
uma categoria de patrimônio como "imaterial", o modelo vigente
forçou a criação da categoria oposta e igualmente imprecisa de
"material".
As consequências práticas desse fato são mais visíveis nos
"excluídos" do sistema binário. Jardins tombados, como o SRBM, e
sítios arqueológicos ficam em um limbo conceitual. A falta de um enquadramento
adequado para esses bens, cujo suporte material não é nem perene nem efêmero,
leva a constantes conflitos de gestão, à aplicação de critérios inadequados —
ora ambientais, ora arquitetônicos — e a um contínuo "desperdício de
energia" em disputas que poderiam ser evitadas.
A solução para esta crise não é criar mais exceções ou
apêndices à lista, mas sim redefinir a premissa fundamental sobre onde reside o
valor cultural de um bem patrimonial.
3. A Premissa Fundamental: A Imaterialidade Intrínseca de
Todo Patrimônio Cultural
Aqui reside a reviravolta conceitual deste manifesto: ao
contrário do que a dicotomia vigente sugere, o valor que justifica a
preservação de qualquer bem cultural reside, sem exceção, em sua
essência imaterial. A matéria é o suporte, o veículo, mas nunca o fim em si
mesma.
Esta afirmação encontra sólido respaldo na teoria jurídica,
como aponta Cecília Londres da Fonseca em uma passagem fundamental: “...embora
a proteção incida sobre as coisas, pois estas é que constituem o objeto da
proteção jurídica, o objetivo da proteção legal é assegurar a permanência dos
valores culturais nelas identificados”.
Essa essência imaterial, que qualifica um bem como
"cultural", pode se manifestar de diversas formas, pois:
- Registra
um saber transmitido tradicionalmente pelas populações;
- Marca
um evento histórico digno de memória;
- Descreve
uma forma antológica;
- Constitui
um testemunho importante de processos construtivos ou organizacionais;
- Contém
um significado especial para um povo;
- Ou
fornece uma explicação do modo de ser de um povo.
O Partenon é um exemplo clássico. Seu valor primário não
reside no mármore de suas colunas (o suporte material), mas na imensa
"carga imaterial de cultura" que ele representa: a capacidade
organizacional de um povo, o domínio de leis estéticas e matemáticas, e o
testemunho histórico de um apogeu civilizacional. As conquistas do espírito
humano, que apenas se corporificam na pedra, são o verdadeiro objeto da nossa
proteção.
Se todo patrimônio é, em sua essência, imaterial, a
distinção entre os bens deve ser buscada no único elemento que de fato varia: a
natureza de seu suporte material.
4. Uma Nova Proposta: Classificação Baseada na
Temporalidade do Suporte Material
Apresentamos aqui o núcleo de nossa proposta: um modelo que
substitui a falsa dicotomia por um gradiente lógico baseado na durabilidade.
Esta abordagem incorpora a dimensão do tempo — fator central e
inescapável na prática da preservação. O modelo atual trata os bens culturais
de forma atemporal, "como se estivessem na eternidade", ignorando a
dimensão contra a qual os profissionais de conservação lutam diariamente para transportar
valores ao futuro.
Propomos uma classificação ternária, que não apenas organiza
o patrimônio de forma coerente, mas também associa diretamente cada categoria a
uma ação de preservação primordial.
|
DURAÇÃO DO SUPORTE |
AÇÃO DE PRESERVAÇÃO |
EXEMPLOS |
|
Perene |
Conservação |
Obras de arquitetura, escultura, pintura. |
|
Temporário |
Substituição |
Obras de paisagismo, jardins históricos. |
|
Efêmero |
Reedição |
Culinária (acarajé), festas cíclicas (Círio de Nazaré). |
A lógica por trás de cada categoria é a seguinte:
- Perene:
Inclui bens cujo suporte material foi concebido para durar indefinidamente
(ou por um tempo muito extenso), como edifícios e estátuas. A ação
principal é a conservação, que visa prolongar a vida da matéria
original.
- Temporário:
Abrange bens cujo suporte material possui um ciclo de vida finito, como a
vegetação de um jardim histórico. A ação fundamental é a substituição
periódica e criteriosa dos elementos para manter vivos os princípios
imateriais do projeto original.
- Efêmero:
Refere-se a bens cujo suporte material tem duração mínima (um alimento) ou
é cíclico (uma festa). Sua permanência no tempo depende da reedição
contínua da prática cultural que o gera.
Na história da ciência, as exceções a uma regra são
frequentemente os catalisadores para um novo e mais acurado modelo. O sistema
de Ptolomeu, por exemplo, exigia artifícios complexos para explicar as órbitas
dos planetas, complexidade que foi varrida pela visão heliocêntrica. A física
de Newton, por sua vez, explicava quase todo o sistema solar, mas falhava com a
órbita de Mercúrio. Os jardins históricos são a nossa órbita de Mercúrio: a
"pedra de tropeço" do modelo vigente. Eles não são uma exceção incômoda,
mas o "indício precioso" que revela a necessidade de um sistema mais
abrangente e acurado. Este novo modelo não é apenas teoricamente mais elegante;
ele resolve dilemas práticos que são insolúveis no sistema atual.
5. Vantagens Práticas e Resolução de Conflitos
A clareza conceitual proposta traduz-se diretamente em uma
gestão de patrimônio mais eficaz, lógica e defensável. Ao focar na
temporalidade do suporte, resolvemos impasses crônicos, especialmente no que
tange ao patrimônio paisagístico. Este modelo finalmente nos arma com a lógica
necessária para alinhar teoria e prática.
As vantagens do novo enfoque são imediatas:
- Valorização
do Imaterial: O modelo permite preservar os princípios
projetuais de um jardim — a composição, as relações espaciais, as texturas
e cores — em vez de sua matéria literal e transitória. Justifica, por
exemplo, a manutenção de espaços vazios significativos, como argumentava
Burle Marx ao citar o compositor Pierre Boulez: "...a música não é
somente a arte dos sons, mas se define melhor por um contraponto de som e
de silêncio". O silêncio na composição de um jardim é um elemento de
projeto a ser defendido da vegetação invasora.
- Gestão
Dinâmica: A ação de "substituição" legitima a gestão ativa e
contínua de um acervo vivo. Torna-se defensável a remoção de plantas
invasoras ou a troca de espécies que, com o tempo, se provaram
inadequadas. O caso do Hibiscus tiliaceus (algodoeiro-da-praia),
usado por Burle Marx em projetos como o Aterro do Flamengo e Calçadão de Copacabana, que hoje
apresenta problemas estruturais, ilustra perfeitamente a necessidade de
substituir elementos materiais para honrar os princípios imateriais do
paisagista.
- Hierarquia
de Preservação: O modelo resolve o conflito entre legislações
ambientais e culturais, frequentemente invocadas de forma equivocada em
sítios como o SRBM. Em um bem cultural tombado, como Ouro Preto ou um
jardim histórico, a preservação cultural engloba e tem prevalência sobre a
ambiental. Isso não diminui a importância da natureza, mas reconhece que
os bens culturais são "bens pontuais e escassos, como o sal da
terra", e sua integridade conceitual deve governar o local.
- Fim
do "Congelamento": A proposta abandona a tentativa fútil de
"congelar a natureza". A gestão de um jardim passa a ser
entendida como um processo contínuo de ações corretivas, que buscam manter
os princípios do projeto vigorando ao longo do tempo, em vez de tentar
fixar uma imagem estática condenada ao fracasso.
Esta abordagem não apenas resolve problemas, mas dignifica a
prática da preservação, alinhando a teoria à realidade dinâmica dos bens
culturais.
6. Conclusão: Um Chamado à Coerência Intelectual e à Ação
Institucional
A unificação do campo teórico do patrimônio cultural no
Brasil não é mais uma opção, mas uma tarefa intelectual inadiável. Não podemos
mais nos conformar com um modelo inadequado que mantém bens da importância dos
jardins históricos, sítios arqueológicos e tantos outros em um estado de
"exclusão conceitual" ou "inclusão precária".
Reconhecemos os obstáculos que se impõem a qualquer mudança.
A inércia intelectual e a estrutura departamental já consolidada do IPHAN — que
é a própria corporificação institucional da falha conceitual que criticamos —
são forças poderosas. No entanto, posicionamos a adoção deste novo modelo não
como uma conveniência administrativa, mas como uma responsabilidade intelectual
e um imperativo para a preservação qualificada do legado cultural brasileiro.
Conclamamos a comunidade acadêmica, os gestores e os órgãos
de preservação a abandonar o conforto de uma classificação falha e a abraçar
uma base teórica mais compreensiva e robusta. Uma base que, ao reconhecer a
imaterialidade como essência e a temporalidade como critério, finalmente honre
a verdadeira e complexa natureza de todo o nosso diversificado patrimônio
cultural.
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