sábado, 1 de novembro de 2025

MANIFESTO PELA RECLASSIFICAÇÃO DO PATRIMÔNIO CULTURAL

1. Introdução: A Urgência de um Novo Paradigma

A atual classificação do patrimônio cultural brasileiro, fundamentada na dicotomia entre 'material' e 'imaterial', representa mais do que uma mera imprecisão acadêmica: é uma falha conceitual que há décadas gera graves e intoleráveis consequências práticas. Este modelo binário, ao distorcer a natureza intrínseca dos bens culturais, gera conflitos de gestão, desperdício de recursos e, em última análise, compromete a preservação de acervos complexos, como jardins históricos e sítios arqueológicos. O presente manifesto apresenta e defende uma reformulação radical, um novo paradigma que substitui a falsa oposição por uma lógica coesa, funcional e capaz de abranger toda a diversidade do patrimônio cultural.

Nossa proposta se apoia em três premissas fundamentais que reorientam o campo da preservação:

  1. Todo patrimônio cultural é essencial e prevalentemente imaterial, pois seu valor reside nos significados, saberes e memórias que ele corporifica.
  2. Não existe patrimônio cultural sem um suporte material que o torne perceptível aos nossos sentidos, seja ele uma edificação de pedra, um alimento ou uma celebração.
  3. A durabilidade desse suporte material deve ser o critério fundamental para a classificação dos bens e, consequentemente, para a definição das estratégias de preservação.

Para justificar a urgência desta mudança, é imperativo primeiro dissecar as falhas lógicas e as consequências disfuncionais do modelo que hoje aprisiona o pensamento e a prática da preservação no Brasil.

2. A Crise do Modelo Vigente: Análise Crítica da Dicotomia Material vs. Imaterial

Compreender as origens do modelo atual é o primeiro passo para superar suas limitações. A criação da categoria "Patrimônio Imaterial", embora bem-intencionada, gerou um efeito colateral imprevisto. Concebida para proteger saberes e fazeres — como festas, tradições orais e ofícios —, ela inadvertidamente forjou uma falsa oposição que obscurece a verdadeira natureza de todos os bens culturais. Esta crise teórica não é um exercício abstrato; ela nasceu de conflitos práticos e da urgência de dirimir controvérsias na gestão do Sítio Roberto Burle Marx (SRBM), cujo acervo paisagístico expôs a total inadequação do sistema vigente.

A gênese do problema reside na "força exclusiva do poder das palavras". Ao se cunhar o termo "imaterial" para um conjunto específico de bens, tudo aquilo que não se encaixava na nova categoria foi forçado, por exclusão lógica, a ser classificado como "material". O resultado é uma taxonomia assistemática e incoerente, que impede o desenvolvimento de estratégias de gestão adequadas.

Para ilustrar o absurdo lógico desta classificação, duas analogias são particularmente eloquentes:

  • A Enciclopédia Chinesa de Borges: A bizarra classificação de animais descrita por Jorge Luís Borges em sua enciclopédia fictícia, o "Empório Celestial de Conhecimentos Benévolos" — que divide os animais em categorias como "a) pertencentes ao imperador, b) empalhados, c) amestrados" etc. —, espelha a lista assistemática apresentada por documentos oficiais do IPHAN, que enumeram o patrimônio em "a) Patrimônio material, b) Patrimônio imaterial, c) Patrimônio natural e d) Sítios arqueológicos". É de se inferir que os dois últimos não se incluam nos dois primeiros, o que nos leva ao disparate de supor que o patrimônio natural e os sítios arqueológicos não são nem materiais, nem imateriais.
  • A Ilha dos Animais Irracionais: A criação de categorias pode gerar efeitos semânticos não intencionais. Se zoólogos, ao descobrir uma nova ilha, denominassem sua fauna como "animais irracionais", seríamos forçados pela lógica a classificar todos os outros animais — cães, lagartos, tuiuiús — como "racionais". Da mesma forma, ao nomear uma categoria de patrimônio como "imaterial", o modelo vigente forçou a criação da categoria oposta e igualmente imprecisa de "material".

As consequências práticas desse fato são mais visíveis nos "excluídos" do sistema binário. Jardins tombados, como o SRBM, e sítios arqueológicos ficam em um limbo conceitual. A falta de um enquadramento adequado para esses bens, cujo suporte material não é nem perene nem efêmero, leva a constantes conflitos de gestão, à aplicação de critérios inadequados — ora ambientais, ora arquitetônicos — e a um contínuo "desperdício de energia" em disputas que poderiam ser evitadas.

A solução para esta crise não é criar mais exceções ou apêndices à lista, mas sim redefinir a premissa fundamental sobre onde reside o valor cultural de um bem patrimonial.

3. A Premissa Fundamental: A Imaterialidade Intrínseca de Todo Patrimônio Cultural

Aqui reside a reviravolta conceitual deste manifesto: ao contrário do que a dicotomia vigente sugere, o valor que justifica a preservação de qualquer bem cultural reside, sem exceção, em sua essência imaterial. A matéria é o suporte, o veículo, mas nunca o fim em si mesma.

Esta afirmação encontra sólido respaldo na teoria jurídica, como aponta Cecília Londres da Fonseca em uma passagem fundamental: “...embora a proteção incida sobre as coisas, pois estas é que constituem o objeto da proteção jurídica, o objetivo da proteção legal é assegurar a permanência dos valores culturais nelas identificados”.

Essa essência imaterial, que qualifica um bem como "cultural", pode se manifestar de diversas formas, pois:

  • Registra um saber transmitido tradicionalmente pelas populações;
  • Marca um evento histórico digno de memória;
  • Descreve uma forma antológica;
  • Constitui um testemunho importante de processos construtivos ou organizacionais;
  • Contém um significado especial para um povo;
  • Ou fornece uma explicação do modo de ser de um povo.

O Partenon é um exemplo clássico. Seu valor primário não reside no mármore de suas colunas (o suporte material), mas na imensa "carga imaterial de cultura" que ele representa: a capacidade organizacional de um povo, o domínio de leis estéticas e matemáticas, e o testemunho histórico de um apogeu civilizacional. As conquistas do espírito humano, que apenas se corporificam na pedra, são o verdadeiro objeto da nossa proteção.

Se todo patrimônio é, em sua essência, imaterial, a distinção entre os bens deve ser buscada no único elemento que de fato varia: a natureza de seu suporte material.

4. Uma Nova Proposta: Classificação Baseada na Temporalidade do Suporte Material

Apresentamos aqui o núcleo de nossa proposta: um modelo que substitui a falsa dicotomia por um gradiente lógico baseado na durabilidade. Esta abordagem incorpora a dimensão do tempo — fator central e inescapável na prática da preservação. O modelo atual trata os bens culturais de forma atemporal, "como se estivessem na eternidade", ignorando a dimensão contra a qual os profissionais de conservação lutam diariamente para transportar valores ao futuro.

Propomos uma classificação ternária, que não apenas organiza o patrimônio de forma coerente, mas também associa diretamente cada categoria a uma ação de preservação primordial.

DURAÇÃO DO SUPORTE

AÇÃO DE PRESERVAÇÃO

EXEMPLOS

Perene

Conservação

Obras de arquitetura, escultura, pintura.

Temporário

Substituição

Obras de paisagismo, jardins históricos.

Efêmero

Reedição

Culinária (acarajé), festas cíclicas (Círio de Nazaré).

A lógica por trás de cada categoria é a seguinte:

  • Perene: Inclui bens cujo suporte material foi concebido para durar indefinidamente (ou por um tempo muito extenso), como edifícios e estátuas. A ação principal é a conservação, que visa prolongar a vida da matéria original.
  • Temporário: Abrange bens cujo suporte material possui um ciclo de vida finito, como a vegetação de um jardim histórico. A ação fundamental é a substituição periódica e criteriosa dos elementos para manter vivos os princípios imateriais do projeto original.
  • Efêmero: Refere-se a bens cujo suporte material tem duração mínima (um alimento) ou é cíclico (uma festa). Sua permanência no tempo depende da reedição contínua da prática cultural que o gera.

Na história da ciência, as exceções a uma regra são frequentemente os catalisadores para um novo e mais acurado modelo. O sistema de Ptolomeu, por exemplo, exigia artifícios complexos para explicar as órbitas dos planetas, complexidade que foi varrida pela visão heliocêntrica. A física de Newton, por sua vez, explicava quase todo o sistema solar, mas falhava com a órbita de Mercúrio. Os jardins históricos são a nossa órbita de Mercúrio: a "pedra de tropeço" do modelo vigente. Eles não são uma exceção incômoda, mas o "indício precioso" que revela a necessidade de um sistema mais abrangente e acurado. Este novo modelo não é apenas teoricamente mais elegante; ele resolve dilemas práticos que são insolúveis no sistema atual.

5. Vantagens Práticas e Resolução de Conflitos

A clareza conceitual proposta traduz-se diretamente em uma gestão de patrimônio mais eficaz, lógica e defensável. Ao focar na temporalidade do suporte, resolvemos impasses crônicos, especialmente no que tange ao patrimônio paisagístico. Este modelo finalmente nos arma com a lógica necessária para alinhar teoria e prática.

As vantagens do novo enfoque são imediatas:

  1. Valorização do Imaterial: O modelo permite preservar os princípios projetuais de um jardim — a composição, as relações espaciais, as texturas e cores — em vez de sua matéria literal e transitória. Justifica, por exemplo, a manutenção de espaços vazios significativos, como argumentava Burle Marx ao citar o compositor Pierre Boulez: "...a música não é somente a arte dos sons, mas se define melhor por um contraponto de som e de silêncio". O silêncio na composição de um jardim é um elemento de projeto a ser defendido da vegetação invasora.
  2. Gestão Dinâmica: A ação de "substituição" legitima a gestão ativa e contínua de um acervo vivo. Torna-se defensável a remoção de plantas invasoras ou a troca de espécies que, com o tempo, se provaram inadequadas. O caso do Hibiscus tiliaceus (algodoeiro-da-praia), usado por Burle Marx em projetos como o Aterro do Flamengo e Calçadão de Copacabana, que hoje apresenta problemas estruturais, ilustra perfeitamente a necessidade de substituir elementos materiais para honrar os princípios imateriais do paisagista.
  3. Hierarquia de Preservação: O modelo resolve o conflito entre legislações ambientais e culturais, frequentemente invocadas de forma equivocada em sítios como o SRBM. Em um bem cultural tombado, como Ouro Preto ou um jardim histórico, a preservação cultural engloba e tem prevalência sobre a ambiental. Isso não diminui a importância da natureza, mas reconhece que os bens culturais são "bens pontuais e escassos, como o sal da terra", e sua integridade conceitual deve governar o local.
  4. Fim do "Congelamento": A proposta abandona a tentativa fútil de "congelar a natureza". A gestão de um jardim passa a ser entendida como um processo contínuo de ações corretivas, que buscam manter os princípios do projeto vigorando ao longo do tempo, em vez de tentar fixar uma imagem estática condenada ao fracasso.

Esta abordagem não apenas resolve problemas, mas dignifica a prática da preservação, alinhando a teoria à realidade dinâmica dos bens culturais.

6. Conclusão: Um Chamado à Coerência Intelectual e à Ação Institucional

A unificação do campo teórico do patrimônio cultural no Brasil não é mais uma opção, mas uma tarefa intelectual inadiável. Não podemos mais nos conformar com um modelo inadequado que mantém bens da importância dos jardins históricos, sítios arqueológicos e tantos outros em um estado de "exclusão conceitual" ou "inclusão precária".

Reconhecemos os obstáculos que se impõem a qualquer mudança. A inércia intelectual e a estrutura departamental já consolidada do IPHAN — que é a própria corporificação institucional da falha conceitual que criticamos — são forças poderosas. No entanto, posicionamos a adoção deste novo modelo não como uma conveniência administrativa, mas como uma responsabilidade intelectual e um imperativo para a preservação qualificada do legado cultural brasileiro.

Conclamamos a comunidade acadêmica, os gestores e os órgãos de preservação a abandonar o conforto de uma classificação falha e a abraçar uma base teórica mais compreensiva e robusta. Uma base que, ao reconhecer a imaterialidade como essência e a temporalidade como critério, finalmente honre a verdadeira e complexa natureza de todo o nosso diversificado patrimônio cultural.

 

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