06/11/2008
Publicado na revista Leituras Paisagísticas n.º3 em 9/11/2009
“– O Sítio é meu lugar de experiências em paisagismo”.
Com essas palavras Roberto Burle Marx definia o espaço onde empenhou 45 anos de trabalho quase ininterrupto. Quem desejar compreendê-los, homem e lugar, deve aceitar plenamente o que a frase significa.
E dizer isto do Sítio – que é um lugar de experiências – aparentemente encerra alguma modéstia. As pessoas, de maneira geral, aturdidas com a beleza dos jardins que as envolvia, não estavam propensas a acreditar que aquilo tudo, aquelas verdadeiras sinfonias vegetais fossem apenas ensaio, rascunho, teste. A afirmação, por mais enfática e explícita que pudesse ser, passava por recurso legítimo de uma retórica tão exuberante quanto o ambiente em que era formulada. Mas, não se tratava apenas de retórica, ali estavam a chave para a compreensão de que tipo de patrimônio foi legado por RBM e, conseqüentemente, a indicação de como conservá-lo.
Ao longo dos anos em que estou diretor deste mágico espaço, tenho me deparado com várias idéias insuficientes e até errôneas sobre o que é o SRBM. As tentativas de rotulá-lo resvalam de lugar-ecologicamente-equilibrado a obra-de-arte, sem atingir o alvo. Existem aqueles que, por achar que a manutenção do Sítio deve ser pautada por leis de proteção ambiental, só podem estar pensando, numa concepção por demais grosseira, que o Sítio seja uma reserva natural. Outros o confundem com algum tipo de jardim botânico, cujo valor capital residiria na variedade e na raridade das espécies que abriga. E, por ter sido a casa do maior paisagista brasileiro, há os que julgam tratar-se integralmente (365.000 metros quadrados) de um jardim definitivo, ou obra de paisagismo tão irretocável quanto possível, “já que seu autor não mais está presente”.
Ora, pautar a preservação do SRBM por leis ambientais, como corolário da primeira idéia, seria decretar seu fim em pouco tempo, pois numa reserva natural é proibido retirar árvores nativas, mesmo que ainda em formação, e são exatamente estas que tentam se imiscuir em todas as áreas do Sítio, o tempo todo, para transformá-lo num matagal caótico, oposto à máxima burle-marxiana “O jardim é a natureza ordenada pelo homem e para o homem”. Em segundo lugar, valorizar individualmente, ainda que sob critérios botânico-científicos, as plantas do Sítio em detrimento de seus conjuntos é impensável, basta percorrê-lo para se ter a certeza disso. Com relação à terceira concepção, lembremo-nos de que há no Sítio regiões que RBM nunca trabalhou, nem pisou e, mesmo nas áreas mais elaboradas paisagisticamente, ele não considerava as composições vegetais como obra de arte finalizada, diferentemente dos demais jardins que projetou.
Nem mesmo a mais prudente e balanceada mistura dos três tipos de percepção refutadas acima é capaz de prover mais indícios conceituais para o tratamento e a preservação adequados do SRBM do que a frase com que se inicia este artigo.
Além de residência, chácara comercial de produção de plantas ornamentais e lugar de uma extraordinária coleção botânica, o Sítio foi, principalmente, um laboratório ou ateliê ao ar livre, com todas as conseqüências que tal fato determina.
É mais do que sabido que, descontente com a mesmice nos hortos e viveiros comerciais, RBM foi buscar na natureza o material de que necessitava para fazer jardins. Fez isso a vida toda em verdes safáris empreendidos a cada vez que tinha notícia de locais de natureza intocada. Como seus troféus – plantas em sua maioria inéditas em paisagismo, algumas até para a ciência – não vinham acompanhados de manual de instruções, era necessário descobrir o modo de mantê-las vivas e como se comportariam fora de seu habitat ao longo de um tempo razoável. Por isso os sombrais do Sítio nunca foram um mero mostruário de museu, com função apenas expositiva, mas, desde o início, lugar onde, de forma empírica, era praticada a aclimatação, a manutenção e a multiplicação das espécies até um dia em que cada uma delas seria testada de outra forma (digo seria porque muitas delas não tiveram tempo de o ser ou são em número ainda insuficiente para tal).
Podemos dividir, então, as ditas experiências em dois grupos básicos: as de ter e as de usar.
As primeiras eram exatamente essas transplantações – trabalho que exigia algo que RBM e alguns de seus jardineiros já tinham incorporado: o conhecimento de uma horticultura meio prática, meio intuitiva, bastante eficiente. O número de espécies da coleção é, em grande parte, resultado do êxito nesse tipo de experiência. As bases dos resultados positivos porém, eram lançadas bem antes do plantio nos sombrais, precedendo mesmo a chegada ao lugar da coleta. Um caso para ilustrar é o das Veloziáceas: durante algum tempo, esse grande admirador da família (Veloziaceae) deixou de trazê-las nas excursões, pois secavam e morriam todas (ou ele assim julgava). Mas quando sua amiga e especialista no táxon, a Dra. Nanuza Luiza de Menezes, lhe ensinou o “segredo” (que consistia simplesmente em, depois de plantada, esperar um tempo absurdamente mais longo do que o normal para que a planta, convenientemente regada, “revivesse”), ele não hesitou em transformar um jardim que havia feito na parte posterior de sua casa na maior coleção mundial desse tipo de planta. Devido a tal conhecimento (ou socrático desconhecimento) RBM evitava coletar espécies cujo transplante fosse muito improvável, e assim mantinha a proporção das plantas sobreviventes acima de 90%.
O know-how na seleção de uma equipe especializada e entusiasmada de colaboradores era outro ingrediente indispensável ao sucesso das empreitadas: motorista de caminhão (capaz de alcançar os lugares mais carentes de pavimentação e nivelamento), arrumador (jardineiro com especial talento para acondicionar mais plantas por metro cúbico), observadores (gente que distinguia desde muito longe o que interessava) e buscadores (exímios “alpinistas”, tanto arbóreos quanto rupestres) formavam um verdadeiro dream team da coleta botânica.
E, por falar em botânica, o botânico oficial podia variar de excursão para excursão, mas era gente do nível de um Luiz Emygdio de Mello Filho, de uma Graziela Maciel Barroso, que muitas vezes o acompanhava. É bem verdade que alguns foram especialistas em determinada e exclusiva família, mas em outros casos, como por exemplo, no do Dr. Gert Hatchbach de Curitiba, cuja especialidade é não uma família botânica, mas... Paraná, as enormes dificuldades na redução de nossa ignorância (estagiários e colaboradores que também iam) ficavam bem atenuadas.
Já as experiências do segundo tipo – as propriamente ditas, as de usar vegetação, aquelas a que provavelmente RBM se referia na frase – começavam quando ele já tinha um número que julgasse suficiente de espécimes e consistiam na utilização dos mesmos em ajardinamentos dentro do Sítio. Além de testar as plantas em outro local, às vezes bem diferentes daquele em que estavam se aclimatando, composições estéticas eram, enfim, ensaiadas. Tal procedimento tinha também a vantagem de desafogar os sombrais e a virtude que se traduz no ditado “Não colocar todos os ovos na mesma cesta”: se alguma fatalidade (doença, roubo, meteorito) se abatesse sobre um dos grupos, restaria outro.
Esta simplificada e ligeira descrição analítica das ações que eram rotineiramente empreendidas é bastante para que se chegue sem esforço à dedução de que as experiências favoreceram a colonização do SRBM e, mais do que isso, foram o modo mesmo de seu desenvolvimento. Por isso as composições do Sítio são diferentes dos jardins formalmente projetados por RBM. Nelas encontramos uma variedade muito maior de espécies. Nelas não está explícito um princípio econômico que RBM sempre procurou transmitir: “Dizer o máximo com o mínimo“. Muito pelo contrário, é como se a coleção de plantas estivesse invadindo os jardins.
Iniciava-se então, com copiosa diversidade e indeterminada duração, um, digamos assim, estágio probatório vegetal. Eram tantas as experiências simultâneas que percorrer o Sítio foi, para RBM, sempre muito profícuo, tanto profissional quanto existencialmente, com recompensas bem maiores do que decepções. Roberto Menescal, um grande colecionador de bromélias, relatou um caso memorável: numa feita, ao ver que um Gramatophyllum (gênero gigante de orquídeas) florescia pela primeira vez desde que o plantara, a euforia de RBM foi tanta que ele, para se aproximar da planta, atravessou em linha reta o lago que se interpunha, sem descalçar um sapato, sem esvaziar um documento dos bolsos, quando poderia ter dado a volta num percurso alguns centímetros mais longo.
Na verdade, a experimentação continua até hoje porque as plantas desconhecem que RBM não mais afere os resultados e prosseguem, já há 14 anos, num comportamento completamente alheio a essa ausência fundamental.
Por outro lado, por falar em resultados, só podemos ter certeza de que uma experiência chegou ao fim quando dá errado. Explico: por mais tempo que uma planta, ou conjunto de plantas, permaneça em estado satisfatório, sempre é possível que no momento seguinte haja um colapso-surpresa ou inicie-se algum processo de degradação inexorável. A espécie Bauhinia blakeana, por exemplo, entusiasticamente utilizada a princípio, em razão de sua profusa floração e crescimento rápido, poucas décadas depois revelou-se frágil, pois seus indivíduos perdem galhos e ficam deformados, mostrando um desempenho longe do ideal para arborização viária. Em outro caso exemplar, o plantio regional de Mangifera indica seria hoje evitado, pois a espécie é vítima de uma praga, por enquanto incurável, que ataca na zona oeste do Rio de Janeiro e está ampliando seus domínios.
Já há algum tempo que o conceito de paisagem deixou de incluir apenas o que é abarcado num golpe de vista ou inventariado em determinada atualidade, sofisticando-se a ponto de contemplar também a história, os processos, a memória, as funções etc.. É, pois, imprescindível que se atente para a gênese, para o processo deflagrador que confere o caráter sui generis do SRBM. Sendo um local raro, talvez único, com certeza pioneiro, de experiências em paisagismo, este predicado precisa ser reconhecido como sua razão-de-ser, seu mecanismo estruturante, seu motivo constitucional e, conseqüentemente, seu mais importante valor de preservação.
As experiências que tiveram, e têm, ocorrência ali também precisam ser mais bem compreendidas, pois diferem formalmente das praticadas em outras atividades, principalmente quanto ao fator tempo: são experiências de duração indeterminada, que podem levar décadas e, muitas vezes, depois de aparentemente fornecer certos resultados, apresenta outros, contrários aos primeiros. Na verdade, como já foi observado, só se pode estar certo do fim de determinada experiência, quando for inegável seu fracasso. Enquanto tudo estiver correndo às mil maravilhas, enquanto nada insofismavelmente definitivo acontecer, perdura a incerteza e considera-se que a experiência continua, pois manifestações do imponderável são sempre possíveis. Manter uma coleção permeada por múltiplos processos de interação e de sinergia demanda vigilância contínua e correção de rumos permanente.
De maneira geral, para a legião de fãs de RBM ainda não é (e talvez nunca seja) desnecessário dizer que experiências, mesmo as dele, por definição implicam em risco: podem dar certo... ou não. Uma vez que se percebe que determinado conjunto de plantas, por mais que se faça para a obtenção de melhoras em seu estado, continua a se afastar das condições razoáveis de saúde ou de exposição, torna-se imperioso modificar, redirecionar ou interromper o processo, sob pena de, materialmente, perder parte do acervo e, imaterialmente, o que é mais grave, ignorar (aniquilando) e aniquilar (ignorando) o patrimônio primordial representado por este fazer sumamente preservável, estabelecido e ensinado por RBM.
O tombamento do SRBM convém ser maximizado, isto é, aplicado não só aos elementos que lá se encontram e que fatalmente desaparecerão a longo prazo no processo sucessivo, mas também à sua qualidade experimental geradora de conhecimento. Desconsiderá-la equivale a não enxergar o grande valor, aquele que mais benefícios pode trazer à cultura e que, sem dúvida, foi o motivo explícito da doação do Sítio à Fundação próMemória, hoje Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
RBM sofria ao imaginar seu trabalho mais importante ameaçado quando ele partisse e receava que sua mensagem não fosse captada. Embora pareça absurdo, por óbvio, que se diga isso, seus motivos para doação do Sítio não foram egoístas. Não devemos, portanto, tentar “recompensá-lo” como se o fossem. Arrebatado por sua missão, ele tinha algo de útil e de urgente para legar, comunicar, transmitir, algo mais valioso do que um terreno com uma coleção de plantas: uma contribuição para a cultura mundial – a capacidade de descobrir e de usar a flora adequada ao paisagismo, o que, em última análise, traduz-se na ciência de interagir com o ambiente. Diante disso, não convém assumir um conservadorismo carregado de inércia, mais fácil e menos comprometido. Manter folcloricamente, perante estudiosos de paisagismo do mundo todo, os restos mortais de experiências que não deram certo é semelhante à atitude de pais que impingem como obras primas quaisquer rabiscos dos filhos. Tal forma de proceder, muito comum atualmente, talvez até seja aceitável em relação à arte indígena ou primitiva, porém o trabalho desencadeado por RBM é, mais do que um produto, um fator e não apenas nos favorece, mas, com mais força, nos integra num movimento universal de desenvolvimento da cultura. Imaginar que ele doou seu Sítio só porque estivesse querendo ser imortalizado não é a melhor interpretação de que somos capazes. Agir em decorrência de (e para atender a) tal imperfeito juízo, buscando criar um parque temático do artista, ou templo de culto a sua personalidade, ao custo de estancar os processos que ele com clarividência instituiu e verdadeira obsessão fez funcionar, tampouco é a melhor homenagem devida a Roberto Burle Marx.
Nos sombrais do Sítio há inúmeras espécies, desentranhadas de regiões longínquas, ainda aguardando utilização.
quinta-feira, 19 de novembro de 2009
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